As sucessivas mentiras na Educação e o futuro dos nossos filhos e netos

Até quando deixaremos que nos iludam, como na fábula de O Lobo e O Cordeiro, pondo em risco, com a nossa ingenuidade, o futuro dos nossos filhos e netos? Aos professores se apontará depois o dedo acusador pelas nefastas consequências de tal propósito.

Para não mentir, não é necessário ser santo, basta ser
honrado, porque não há coisa mais afrontosa, nem que
maior horror faça a quem tem honra, que o mentir.
Padre António Vieira (1608-1697)

Há dias, abrindo ocasionalmente a rádio (Antena 1), que estava a transmitir o Programa Forum, fui surpreendida com uma voz masculina que afirmava, em tonalidade bondosa, estar o Ministério da Educação (ME) sempre solidário com professores agredidos, por alunos ou encarregados de educação, aos quais, acrescentava, o ME dispensava todo o apoio. Focava ainda que o problema residia também no facto de os professores não apresentarem, muitas vezes, queixa relativamente à agressão ocorrida. Quando o jornalista (António Jorge) agradeceu a intervenção e mencionou o nome de João Costa, Secretário de Estado da Educação, o que senti de imediato foi uma repulsa pelo que ouvira, a que se associou a imagem do lobo com pele de cordeiro, neste caso, voz, numa despudorada actuação que só poderá convencer os que, de forma preconceituosa, atribuem aos professores os males que infestam o ensino ou os que se aproveitam empenhadamente na divulgação da mentira, em redes sociais. Felizmente, a intervenção que se seguiu, do sindicalista André Pestana, desmontou a solidariedade tão enganosamente exposta. Mas sabemos por experiência e pela própria História que “a mentira hoje no mundo é mais poderosa que a verdade” (Padre António Vieira) e Portugal não é excepção. À força de se repetir…

Todos puderam observar a rapidez e a linguagem desenvolta com que o ME sossegou os portugueses, a propósito da agressão de um professor de Informática a um aluno do 8.º ano que manteve o seu telemóvel em cima da carteira, apesar de instado a que o guardasse. Não pomos em questão a existência da agressão ao aluno. Desejamos apenas salientar a indisciplina na sala de aula, obviamente impeditiva do trabalho de um professor que, no espírito da Reforma de 2003, que se mantém, é o único responsável pela manutenção da ordem na sala de aula. Ou seja, a sua avaliação será profundamente prejudicada pelo facto de não conseguir impedir o mau comportamento dos alunos, uma situação perversa que muito naturalmente o inibirá de apresentar queixa à Direcção da sua escola quando casos de grave indisciplina ocorrem.

Vi colegas, e soube de colegas meus, profundamente desrespeitados no corredor quando se dirigiam para a sua sala de aula, e nas suas próprias aulas, e apesar de alguns desses professores apresentarem queixa à Direcção, esta entendia que os colegas se deviam interrogar pedagogicamente sobre a situação, o que funcionava como um estímulo para esses alunos manterem a indisciplina, que se ia tornando crónica, uma vez que assistiam ao alheamento da escola perante a violência dos seus actos. Um professor, como é óbvio, procura sempre manter um ambiente propício à leccionação, estando atento a situações de indisciplina, mas não é tolerável que estas, agravadas pela permissividade, que alastrou ao longo dos anos, se tornem dominantes, impedindo que se concretize a função de um professor que é a de ensinar, de transmitir (e saliento este verbo, tão amaldiçoado pela Reforma de 2003), de despertar, de sensibilizar, de ajudar a formar uma personalidade crítica preparando obviamente para a vida.

Na verdade, e não direi nada de novo, não é atributo de um professor substituir os pais ou a assistente social ou a psicóloga ou inclusive andar a mando de sugestões da Direcção da Escola, muitas vezes em cumplicidade com os objectivos irresponsavelmente economicistas do Ministério da Educação. O aconselhamento de aprovações para fins estatísticos é um exemplo dessa estreita cumplicidade que eu própria pude constatar, a par de conselhos de turma em que um grande número de negativas eram transformadas em positivas para permitir a aprovação, facto que o próprio aluno recebia estupefacto.

Um outro exemplo diz respeito à avaliação de “peritos” do ME relativamente a turmas, com um elevado número de alunos, em que contrariando a experiência dos professores, e um mínimo de sensatez, afirmaram ser aquelas mais vantajosas à qualidade do ensino do que turmas com poucos alunos. São estas e outras situações que continuamente agridem a autoridade de um professor, deixando transparecer uma grande falta de respeito pelo seu trabalho, para além de interiorizarem nos alunos a ideia de que o esforço não é necessário, favorecendo a indisciplina. Embrião de um mundo às avessas que se contempla nesta sórdida e remendada manta de retalhos, em que se transformou o Ensino, tecida atabalhoadamente por diferentes ministérios da educação, e seus “peritos”, em que os professores foram e continuam a ser usados como bodes expiatórios de todos os problemas.

E, no entanto, quem, hipocritamente afirmando o contrário, se tem alheado da formação dos professores, desinvestindo nessa vertente fundamental? Quem interferiu na Escola, promovendo concursos para “professores titulares”, em nome do mérito, quando o único objectivo não era senão desestabilizar a convivência entre pares, o que aconteceu igualmente, com outra medida economicista, na criação de mega-agrupamentos tão criticados por encarregados de educação, professores e sociedade em geral e que deterioraram, como se constata amiúde, o quotidiano de cada escola, agora sob a dependência de um Director, tantas vezes cioso do seu poder? Quem tem forçado os professores, enganosamente em nome de “peritos” e do “melhor para os alunos”, a um desmedido e estéril trabalho burocrático que os impede de desenvolver condignamente a preparação das suas aulas, aquilo que deveras interessa? Quem tem infestado a escola, em nome de um melhor futuro para os alunos, com sucessivas e polémicas alterações curriculares, ortográficas e outras, recusando-se a ouvir os professores?

E a propósito deste último exemplo, foi ainda no mesmo programa da Antena 1 que ouvi também João Costa elogiar a intenção (economicista, sublinhe-se, mas que se atribui invariavelmente a pareceres de “peritos”) de acabar com as retenções, impondo a passagem automática até ao 3.º ciclo, a que se seguirá o Secundário, se nós professores, juntamente com os encarregados de educação e a sociedade em geral, nada fizermos. Uma exposição inegável do nivelamento por baixo e da apologia da facilidade, bem evidentes na Reforma de 2003, com a perpetuação, não tenhamos dúvidas, da indisciplina. A esta bondosa medida seguir-se-á o fim das disciplinas, substituídas por saberes dispersos, iniciativas temáticas, muitas discussões em grupo e outras sugestões afins. E tudo apregoado em nome de um melhor futuro para os alunos, sobretudo, como acentuam, para os mais desfavorecidos, quando todos sabemos que serão estes os mais atingidos por estas medidas economicistas e criminosas, ouso dizê-lo.

Pergunto-me se os encarregados de educação deste país, certamente interessados no futuro dos seus filhos, não se juntarão aos professores, numa luta contra esta nova imposição, que se prepara, em nome de um falacioso argumento, o último de que se serviram, de que assim “acontece também na Europa”? O que fica por contar é como se chegou a essa situação, na Europa. E o que não dizem, e conhecem, uma vez que foram múltiplas as viagens feitas, é o que nesses países se passa com os programas (estabilidade), com o horário de professores e de alunos (não sobrecarregados), com a formação dos professores (exigência no seu recrutamento), com o tempo que os pais têm disponível para acompanhar os seus filhos (horários humanizados), com o pacto político feito entre os vários partidos, na defesa da qualidade do ensino, factor primordial numa qualquer sociedade e que em Portugal nunca aconteceu.

Até quando deixaremos que nos iludam, como na fábula de O Lobo e O Cordeiro, pondo em risco, com a nossa ingenuidade, o futuro dos nossos filhos e netos? Aos professores se apontará depois o dedo acusador pelas nefastas consequências de tal propósito. Até quando aceitaremos acriticamente estudos de “peritos” do ME que concluem, como sendo uma grande novidade, o evidente em situações há muito denunciadas, como o desumano número de horas que as crianças suportam, tal tortura de cansaço, em creches e Jardins de Infância, precisamente porque os seus pais trabalham demasiado para saciar a voracidade de meia dúzia de privilegiados sem rosto?

 A Escola, em vez de ajudar a ultrapassar barreiras, de ser seriamente inclusiva e de instruir, passará definitivamente a estupidificar, a desresponsabilizar e a desmotivar os alunos, atrofiando não só as suas capacidades, mas também oferecendo êxitos inesperados, o que não é uma forma honesta de preparar para a vida, muito menos de formar a personalidade de um cidadão responsável. A Escola, pela mão de vários Ministérios da Educação, com realce para os que acompanharam a Reforma de 2003 e a perpetuam, tem-se vindo a preparar para escravizar sucessivas gerações de estudantes, no intuito de satisfazer a ambição desmedida dos que aguardam, no mundo do trabalho, físico ou intelectual, trabalhadores amestrados e educados a não pensar, a aguentar o extremo cansaço que lhes será exigido e a ser mal pagos. Como um rebanho seguirão, de cabeça baixa, o seu pastor, neste caso, dramaticamente sem rosto.

Digamos NÃO! a esses “peritos”, nacionais e estrangeiros, que, nas palavras de Agostinho da Silva, “amam o povo, mas não desejariam, por interesse do próprio amor, que saísse do passo em que se encontra; […]. Vêem-se generosos e sensíveis quando se debruçam sobre a classe inferior e traduzem, na linguagem adamada, o que dela julgam perceber; é muito interessante o animal que examinam, mas que não tente o animal libertar-se da sua condição; estragaria todo o quadro […].” Caber-nos-á a nós estragá-lo, insurgindo-nos activamente contra a Mentira!

Sugerir correcção
Ler 7 comentários