O Diogo vai ser despedido

O Diogo vai ser despedido. É uma questão de tempo. Seja por extinção súbita do seu posto de trabalho, seja pela impossibilidade dos objectivos profissionais do ano que se avizinha, alguma coisa vai acontecer.

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Luis Melendez/Unsplash

O Diogo vai ser despedido mas ainda não sabe. Mas vai saber. Muito em breve, é uma questão de dias, meses, quando o Diogo estiver menos à espera.

Mas ele está à espera. O Diogo está à espera. Por isso já veio falar comigo. Por isso já foi falar com o sindicato. Sim, o sindicato. O sindicato que não serve para nada, mas se calhar serve, serve para aconselhamento jurídico, serve para sossegar o Diogo e dizer-lhe como a sua atitude foi correcta e, portanto, não deve ter nada a temer no caso de algo acontecer. Porque algo vai acontecer e o Diogo vai para a guerra. Tem de ser. Teve de ser.

Tudo por causa do filho do director clínico, um rapazito de 19 anos, ainda sem barba, tal como o Diogo, aliás, com a diferença de o Diogo ter 40 anos e merecer o lugar, ao contrário do filho do director clínico, o qual, por obséquio, é filho do director clínico e, por conseguinte, vai continuar a ser o filho do director clínico.

Ninguém, mas mesmo ninguém, na unidade hospitalar levantou um dedo ou perguntou o que quer que seja quando viram o filho do director clínico entrar porta adentro para o seu primeiro dia de trabalho. Ninguém quer perder o emprego. Com o “Brexit” à porta, não ter o dinheiro em cima da mesa ao fim do mês é uma sentença de morte em terras de sua Majestade. Não por não haver mais empregos. Há. Mas são mal pagos, piores, precários, um emprego só nunca chega e a vida começa a rimar com escravatura.

E por isso ninguém fala. E por isso todos comem às colheres cheias e não se queixam, antes pelo contrário, pedem mais.

Mas o Diogo não. O Diogo ou é muito corajoso ou é parvo. Mas não, o Diogo é corajoso e com a coragem vem sempre uma dose de insegurança, incerteza, vulnerabilidade. Não só. A reputação do hospital é também a sua e o Diogo sabe de cor o preço pago para aqui chegar, a uma vida e um emprego. Não quer ter de pagar tudo outra vez. O Diogo sabe disso. O Diogo tem medo. O Diogo teve medo. Mas não temos todos? E, no entanto, o Diogo foi o único a falar com o director clínico. 

“Desculpe, queria falar consigo”, começou em inglês. Estavam os dois sós na sala, o Diogo fechou a porta para que ninguém os ouvisse e sentou-se a medir as palavras. O director clínico já sabia que vinha aí coisa mas, sem perceber e ao mesmo tempo surpreendido, não pôde deixar de esboçar um sorriso de interrogação e um “O que se passa?”.
— O seu filho está a fazer voluntariado cá no hospital ou está a trabalhar?
— Está a trabalhar.
— E o que é que o sr. director acha disso?
— O que é que eu acho? Fui eu que o contratei!

Claro que foi o director clínico quem o contratou, mas o Diogo tinha de começar a conversa por algum sítio e, apesar do gelo tão fino e da gargalhada pronta do director diante deste atrevimento, o Diogo não se coibiu de explicar que uma coisa é um emprego de Verão, algum dinheiro no bolso, a oportunidade e experiência, o acrescentar algumas linhas ao currículo quando ainda se tem 19 anos, e ainda bem que assim é. Outra coisa, no entanto, é começarmos a ver o rapazito no hospital sempre que se aproximam as férias, antes do Natal, nos verões seguintes, e como tal pode ser visto à luz do favorecimento em detrimento de outros candidatos para o mesmo lugar.

O director clínico explodiu. Se a conversa era só a dois, os berros do homem fizeram-se ouvir no quarteirão inteiro. Porque “neste hospital não há nem favorecimentos nem nepotismo!”, gritou o director, e o filho está a trabalhar por haver falta de uma pessoa, o filho trabalha por um salário inferior e o hospital fica a ganhar.

O Diogo levantou-se, e sem responder nem discutir agradeceu a explicação, pediu desculpa pelo tempo tomado e deixou o director a limpar a espuma de raiva dos cantos da boca. O Diogo estava a tremer quando saiu da sala. O Diogo telefonou de imediato ao sindicato quando saiu da sala para relatar tudo ao pormenor e pedir conselhos. 

O Diogo veio comigo para Inglaterra, não ao mesmo tempo, um pouco depois. Mas, tal como eu, numa terra onde a cultura de mérito é uma realidade, depois destes anos todos já se tinha esquecido dos bons hábitos portugueses onde uns são filhos e outros enteados. E porque o Diogo é enteado, teve de emigrar. E isso o Diogo nunca perdoou. Recomeçar do zero e subir a pulso numa terra que não é a sua foi, para o Diogo, um pequeno milagre. Um milagre que ninguém quer ver chegar ao fim.

Por isso, o Diogo não pôde deixar de dizer. Por isso o Diogo não pôde deixar de pensar. Por isso o Diogo não pôde deixar de dormir. Mesmo sabendo que isso lhe pode custar o emprego e um regresso a casa antecipado.

Entretanto ficou a mensagem: neste hospital não há favorecimentos nem nepotismo. Não foi o Diogo quem mencionou a palavra nepotismo. O Diogo nem sequer tinha bem a certeza de como se pronuncia nepotismo em inglês. É parecido: nepotism. Foi o director clínico quem o disse. E para bom entendedor…

O Diogo vai ser despedido. É uma questão de tempo. Seja por extinção súbita do seu posto de trabalho, seja pela impossibilidade dos objectivos profissionais do ano que se avizinha, alguma coisa vai acontecer. Mas talvez não seja despedido. Por isso o Diogo já telefonou para o sindicato. O Diogo vai à guerra, mas não vai à guerra sozinho. Ou, se calhar, vai mesmo sozinho.

Mais ninguém quer perder o emprego.

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