48 horas dentro e fora do sistema de saúde britânico

Clara Ferreira Alves sofreu uma fractura múltipla da perna depois de escorregar nas escadas rolantes do metro. Mas nem tudo o que aconteceu de mau no Hospital Universitário de King’s Cross, em Londres, é culpa do “Brexit”. Antes disso, temos a realidade do dia-a-dia e o bom senso.

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Marcelo Leal/Unsplash

A 1 de Novembro, num artigo publicado no Expresso, ficámos a saber do infeliz acidente sofrido por Clara Ferreira Alves, jornalista do mesmo jornal: Clara Ferreira Alves sofreu uma fractura múltipla da perna depois de escorregar nas escadas rolantes do metro na estação de King's Cross, em Londres. Deixo aqui os meus votos de rápidas melhoras, ainda para mais quando casos desta natureza precisas de pelo menos seis meses de recuperação.

À data, Clara Ferreira Alves encontrava-se em Londres com o filho. Pelo início do texto compreende-se serem recorrentes as suas deslocações a Londres, muito provavelmente por o filho estudar e/ou trabalhar nesta cidade. Clara Ferreira Alves adora Londres, a gentrificação, o futurismo, as lojas de luxo, a miscigenação de línguas e culturas. Desengane-se, no entanto, quem pensa ser esta uma cidade de profissionais ambiciosos a gerir o mundo de iPad na mão. Não, Londres é uma cidade de milionários, basta olhar à volta para quem nos rodeia no centro entre executivos em carros topo de gama, empresas de topo em arranha-céus, literalmente, de topo, tão inacessíveis como as suas contas bancárias, lado a lado com um cada vez menor número de bairros de habitação social onde um T1 vale 1 milhão de libras, recambiando-se famílias inteiras para Birmingham ou, não sendo possível, para a rua. E o Inverno à porta.

Desengane-se, de igual modo, quem pense ser esta cidade o melhor exemplo de uma Babilónia inclusiva onde todos são bem-vindos e aceites. Londres é uma cidade abertamente racista, resultado directo do “Brexit”, principalmente entre os elementos da working class, a classe mais sacrificada pelo capitalismo desenfreado vivido neste país, não só após a adesão à União Europeia, mas também por culpa do “thatcherismo”, ainda bem vivo e presente nas mentes de quem comanda o leme deste país. E sim, em Londres a espécie humana vive muito bem a fazer mal a outrem, ou não fosse Londres o palco de feiras internacionais de armas, as mesmas armas usadas neste momento pela Turquia contra os curdos. 

Com a perna partida, Clara Ferreira Alves rumou ao Hospital Universitário de King's Cross. Uma vez no hospital, teve de esperar seis horas para ser atendida. De acordo com a mesma, e aqui começa o seu desabafo, tal deve-se ao facto de não ser residente no Reino Unido. Mas não, tal deve-se ao facto de haver casos ainda mais urgentes para tratar. Mas lá chegaremos. De caminho deram-lhe ibuprofeno, o anti-inflamatório mais comum por estas paragens, e paracetamol, igualmente básico e para as dores. Qualquer medicamento mais forte necessita de receita médica no Reino Unido.

Ao fim de seis horas, e com uma perna partida, a cirurgia é a única solução, de preferência na madrugada do dia seguinte. Para tal, Clara Ferreira Alves teria de ficar internada para garantir a vaga na cama. Infelizmente, não se precavera para passar a noite no hospital e acaba a pedir para ir para casa. Pelo menos, e de acordo com o texto, precisava do computador. Com a promessa de ser contactada pelo hospital no dia seguinte, foi-se embora. De caminho ainda teve tempo para telefonar ao seu médico pessoal de modo a confirmar a decisão dos ortopedistas britânicos. Conclusão: assim que saiu do hospital, perdeu a vaga. E como não reside no Reino Unido, recebeu ordem imediata para continuar os tratamentos em Portugal. 

O resto do texto é, por consequência, dedicado a criticar o sistema de saúde britânico, acusando-o da implementação antecipada do “Brexit”, preterindo cidadãos de outros países em favor de quem reside em terras de Sua Majestade. Infelizmente, Clara Ferreira Alves desconhece o erro cometido ao sair do hospital numa terra onde a cama está sempre garantida para quem necessite de cuidados urgentes, bastando para tal que o paciente permaneça, logicamente, no hospital. Se a cama vaga, outro doente toma de imediato o seu lugar. E se Clara está suficientemente sã para regressar a casa, de igual modo estará suficientemente sã para voltar a Portugal e continuar os tratamentos.

Felizmente, nem tudo o que aconteceu de mau no hospital é culpa do “Brexit”. Antes do “Brexit” temos a realidade do dia-a-dia e o bom senso das vidas normais e dos acidentes normais, os quais carecem de uma noite no hospital, sem computador, sem telemóvel, sem ligação ao mundo para além do mundo em redor, da cama à porta da enfermaria.

O National Health Service é a última grande herança do pós-segunda guerra mundial num país, à data, em escombros e, por conseguinte, verdadeiramente preocupado em garantir a saúde de todos os que o procuravam e procuram. Infelizmente, as pressões de uma população em constante crescimento e envelhecimento têm limitado a sua capacidade. Não há camas ilimitadas e as vagas nunca ficam por preencher, mesmo quando a boa vontade é muita.

A explicação é simples e estamos todos no mesmo barco. Termino com os meus sinceros desejos que tudo corra bem e depois da operação cá estamos todos, ansiosamente, à espera.

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