A Primavera iraquiana

A semelhança com a Primavera árabe é evidente. A democracia ocupou as ruas do Iraque. É o que acontece quando ela não existe em lugar nenhum.

Num Médio Oriente estraçalhado desde a invasão do Iraque, as manifestações são a arma mais poderosa de quem não dispõe ou não confia na eficácia de qualquer outra. Os protestos nas ruas de Beirute nasceram do anúncio de impostos sobre o tabaco, a gasolina, e até sobre a utilização da aplicação do WhatsApp, estenderam-se à corrupção e à deficiente administração governamental e terminaram com a demissão do primeiro-ministro Saad Hariri, que se mantém em funções até ser encontrada uma solução alternativa. O que começou por ser nas ruas de Bagdad uma manifestação pacífica devido ao mesmo descontentamento com o estado do regime e com o contexto económico gerou um protesto de massas em todo o país, que provocou vários mortos, e a demissão do primeiro-ministro Adel Abdul Mahdi, ainda sujeita a uma alteração legislativa. A resposta violenta do Estado, como vimos em ambos os casos, foi contraproducente; só enfureceu ainda mais os manifestantes.

Há um denominador comum entre os protestos actuais em vários pontos do globo, de Hong-Kong a Bagdad: o descontentamento de uma juventude que se revela inconformada perante um cenário político que gera mais desconfiança que outra coisa qualquer ou que está submersa numa profunda e longa crise económica. Mais de 40 por cento da população mundial tem actualmente 24 anos ou menos do que isso. No caso iraquiano, dois terços dos jovens ainda não tinham nascido ou eram demasiado novos quando Saddam Hussein foi derrubado em 2003. Só isso e o desespero podem explicar que Saddam possa ser a referência de muitos dos manifestantes, ao reproduzirem uma imagem favorável do tenebroso ditador enquanto construtor de obras públicas e ao elogiarem o seu regime como a antítese do cataclismo que se seguiu a 2003 e no qual cresceram.

A riqueza petrolífera do país não impede que quase 23 milhões dos 38 milhões de habitantes vivam com pouco mais de cinco euros por dia, que não tenham acesso a água potável, fornecimento regular de electricidade, assistência médica ou educação. E a sua deficiente distribuição, mais notória à medida que aumentam as exportações de petróleo, só reforça as acusações de que o Governo é manobrado pelos EUA e pelo Irão. Para além disso, os manifestantes exigem a saída de cena dos líderes religiosos, “porque eles não têm lugar na política”. A semelhança com a Primavera árabe é evidente. A democracia ocupou as ruas do Iraque. É o que acontece quando ela não existe em lugar nenhum.

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