Fantasma da Primavera Árabe saiu às ruas no Iraque para exigir uma “revolução política”

Manifestações contra a corrupção e a degradação dos serviços públicos cresceram no último mês e já fizeram mais de 250 mortos. Polícia acusada de provocar “ferimentos horríveis” a manifestantes.

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Os protestos chegaram também à capital, Bagdad LUSA/AHMED JALIL

Quase uma década depois dos gigantescos protestos na Tunísia que se alastraram a outros países do Norte de África e do Médio Oriente, dezenas de milhares de iraquianos estão agora a exigir nas ruas as mesmas mudanças profundas no Governo e na economia que levaram à Primavera Árabe de 2011 e 2012. No último mês, mais de 250 pessoas morreram em duas ondas de protestos na capital e no Sul, de maioria xiita, mas os analistas dizem que não se trata de um conflito sectário – cansados de corrupção, desemprego e serviços públicos em ruínas, os jovens iraquianos exigem uma revolução na política do país e não se contentam com a já anunciada saída do primeiro-ministro, Adel Abdul Mahdi.

“Quando é que isto vai mudar?”, perguntou uma jovem iraquiana aos governantes do país através das câmaras do canal Al-Jazira, na sexta-feira, em mais um dia de protestos em Bagdad. “Somos uma nação que ama a vida e temos um país rico. Vocês estão a roubar-nos, mas nós vamos manter-nos firmes. Homens e mulheres, unidos.”

A primeira onda de protestos, no início de Outubro, durou pouco mais de uma semana, até que o primeiro-ministro anunciou um pacote de reformas que incluía uma remodelação governamental, um corte nos salários dos responsáveis de topo e um plano de redução da taxa de desemprego.

Mas a forma como a polícia lidou com os protestos da primeira semana de Outubro, com investidas violentas que resultaram na morte de 149 manifestantes, enfureceu ainda mais a população jovem, que regressou em força às ruas na última semana.

Desde então, mais uma centena de pessoas morreu em confrontos com a polícia, que tem usado munições reais e gás lacrimogéneo. Segundo a Amnistia Internacional, alguns agentes disparam granadas de gás à queima-roupa, e há imagens de manifestantes com “ferimentos horríveis”.

Na quinta-feira, o Presidente iraquiano, Barham Saleh, anunciou que o primeiro-ministro está disposto a sair do cargo assim que for encontrada uma “alternativa aceitável e constitucional”, o que está a ser preparado através da discussão e aprovação, na próxima semana, de uma lei que vai permitir essa mudança e, mais tarde, a convocação de eleições antecipadas.

Mas as exigências dos manifestantes não se ficam pela mudança de primeiro-ministro, e mesmo depois do anúncio do Presidente, dezenas de milhares de pessoas bloquearam, este sábado, as entradas e saídas do importante porto de Um Qasr, no Golfo Pérsico.

As exportações do petróleo iraquiano, feitas a partir de plataformas offshore, não foram afectadas pelo bloqueio, mas os protestos estão a ter consequências graves para a entrada de bens alimentares no país. É a Um Qasr que chega a maior parte das importações de óleos vegetais ou açúcar – num país dependente da importação de alimentos.

Contra políticos e religiosos

Para além de profundas reformas na política iraquiana, que passam pelo combate à corrupção que ficou desde os tempos do ditador Saddam Hussein, e da reconstrução dos serviços públicos que foram destruídos nos anos da guerra até à derrota do Daesh, em 2017, os manifestantes exigem a saída de cena dos líderes religiosos. E dizem-se convencidos de que os líderes políticos apenas estão interessados em aplicar as instruções dos Estados Unidos da América ou do Irão.

“Queremos uma mudança total, e não apenas a saída de um ou dois ministros que vão ser substituídos por outros corruptos”, disse à agência Reuters um manifestante em Bagdad que se identificou apenas como Hussein.

Também nos protestos da capital, Hoda, de 59 anos, disse à agência AFP que o futuro político do Iraque passa pela saída de cena dos líderes religiosos. “Não precisamos dos clérigos, eles não têm lugar na política”, disse.

Há 40 anos em conflito quase permanente, desde a guerra com o Irão à Guerra do Golfo, passando pela invasão norte-americana e por uma guerra civil agravada pela ofensiva dos extremistas islâmicos do Daesh, o Iraque tem beneficiado de uma relativa calma nos últimos dois anos. E a população, em particular os mais jovens, exige agora que os políticos comecem a distribuir com mais rigor o dinheiro que tem entrado no país à medida que as exportações de petróleo vão subindo cada vez mais.

Segundo o Banco Mundial, quase 23 milhões dos 38 milhões de iraquianos vivem com menos de seis dólares (pouco mais de cinco euros) por dia.

No relatório mais recente sobre as mudanças no país após a derrota do Daesh no Iraque, em 2017, com a reconquista de Mossul, o Banco Mundial diz que o Produto Interno Bruto iraquiano pode crescer 4,8% em 2019, “revertendo a contracção dos dois anos anteriores”. Mas reconhece também que o potencial de crescimento do país está a ser afectado pela “lentidão do programa de reconstrução, problemas na execução do plano de investimento e o aumento da factura das importações”.

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