Aprender com os erros e melhorar os cuidados de saúde

À semelhança do caso de Bristol, exige-se um inquérito independente ao caso das ecografias obstétricas, de forma a serem apuradas deficiências e identificadas medidas adequadas.

No final dos anos 90 do século passado foi dado a conhecer o que ficou conhecido como “escândalo de Bristol”. Confrontado com um conjunto de alertas, o secretário de Estado da Saúde britânico abriu um inquérito independente ao Bristol Royal Infirmary, tendo sido concluído que, devido à escassez de cirurgiões e enfermeiros, à falta de liderança, prestação de contas e trabalho de equipa, os serviços de cirurgia cardíaca pediátrica “simplesmente não estavam à altura”. Em cinco anos (1991-1995), esta unidade de saúde deixou morrer 34 crianças com menos de um ano de idade. Crianças que teriam sobrevivido em outras unidades do Serviço Nacional de Saúde inglês. A investigação veio demonstrar que entre os profissionais de saúde persistia uma abordagem negligente à segurança, sigilo quanto ao desempenho e falta de monitorização por parte da administração. Face a este escândalo, os cirurgiões pediátricos lideraram um processo de monitorização do desempenho de médicos e hospitais. Em 2010, a taxa de mortalidade 30 dias após a cirurgia cardíaca caiu de 4,3% em 2000 para 2,6%.

Este caso infeliz deveria servir-nos de exemplo para o recente caso das ecografias obstétricas. A área da saúde materno-infantil é duma enorme sensibilidade. Neste campo, Portugal tem apresentado melhorias substantivas, sendo dado como o melhor exemplo de sucesso do Serviço Nacional de Saúde (SNS) através da redução das taxas de mortalidade perinatal e infantil por causas evitáveis. Orgulhosamente, apesar dos recentes indicadores de deterioração, Portugal continua a ter das mais baixas taxas a nível mundial. Para isto contribuíram políticas de saúde acertadas e um enorme empenho e qualidade dos profissionais de saúde. As práticas seguidas e normalizadas de vigilância na gravidez têm contribuído sobremaneira para os resultados alcançados. 

Como reconheceu o bastonário da Ordem dos Médicos (OM), existiu uma falha grave e grosseira do Conselho Disciplinar da Secção Regional do Sul da OM face a um role de denúncias que não tiveram qualquer consequência. Evidentemente, neste caso especifico, a OM falhou no seu papel de defesa da saúde dos cidadãos e dos direitos dos doentes. Nada será mais o mesmo e exigem-se medidas para evitar a repetição deste tipo de situações. Mas esta não é só uma questão de regulação profissional. É uma falha sistémica com raizes mais profundas que coloca em causa a confiança dos cidadãos e a qualidade dos cuidados de saúde. 

Todas as grávidas e as suas famílias, principalmente aquelas com menos recursos, sabem as dificuldades em garantir uma vigilância adequada da gravidez. A falta de resposta do SNS (seja pela falta de equipamentos ou pela ausência de profissionais disponíveis) conduzem as grávidas ao setor privado, particularmente para a realização de ecografias obstétricas. Mesmo as que têm oportunidade de serem acompanhadas em entidades públicas facilmente dão conta das limitações decorrentes da obsolescência dos ecógrafos disponíveis. Por sua vez, o recurso ao setor privado com convenção com o SNS ou com a ADSE é muito limitado. Para uma atividade ultra-especializada, o Ministério da Saúde paga entre 14,07€ (ecografias obstétricas do 1.º e 3.º trimestres) e 37,83€ (ecografias obstétricas do 2.º trimestre), e a ADSE paga 14,50€ e 39,00€, respetivamente. Não surpreende o número reduzido de entidades que se sujeitam a estes preços, quando praticam valores bastante mais elevados fora do modelo de convenções. Também preocupante é verificar a ausência de mecanismos que garantam a qualidade de cuidados prestados/contratados pelo Estado, quer os exclusivamente privados. Por outro lado, os valores no setor privado são impraticáveis para a maioria das famílias, criando-se situações de desigualdades no acesso a cuidados de saúde numa área tão crítica. Refira-se que, há 12 anos, ciente deste problema, o Ministério da Saúde lançou o programa nacional de diagnóstico pre-natal. Pretendeu-se financiar os hospitais públicos para a realização desta atividade. Não é conhecida uma avaliação deste programa, nem mesmo a cobertura nacional ou o número de grávidas atendidas. 

Do equívoco da Entidade Reguladora da Saúde, agora até com competências no licenciamento de unidades de saúde, à incapacidade técnica e de meios da Inspeção Geral das Actividades em Saúde, não surpreende a falência da regulação, auditoria, inspeção e fiscalização das entidades da saúde. Com efeito, é mais fácil centrarem-se nos aspectos burocráticos das entidades públicas que na substância da qualidade de cuidados de saúde no setor público ou privado.

Face a estas circunstâncias, estranha-se a ausência de quem tem responsabilidades maiores. Do Ministério da Saúde ao Parlamento. Não basta lamentar o sucedido, quando este é apenas mais um sintoma. Não basta um inquérito parcial de uma administração regional, quando a questão de fundo não é contratual ou de eventual fraude de faturação. No mínimo, é uma falência dos mecanismos de alerta, não existindo qualquer comunicação entre as múltiplas entidades competentes, ficando o cidadão sem saber a quem apresentar queixa sempre que se sentir lesado. No mínimo, este é mais um problema de acesso a cuidados de saúde numa área crítica. No mínimo, este é mais um exemplo de desvalorização progressiva das entidades públicas. No mínimo, é um caso de ausência de mecanismos céleres e justos de apuramento de responsabilidade e reparação que conduz paulatinamente ao enfraquecimento do Estado de direito. 

Não vale de muito gabarmo-nos do sucesso da redução da mortalidade infantil, e depois fingirmo-nos de mortos ou assobiarmos para o lado quando os pilares começam a ruir. Não vale de muito deixar que os profissionais arquem com as responsabilidades sozinhos, quando o trabalho e a responsabilidade são de equipa.

À semelhança do caso de Bristol, exige-se um inquérito independente de forma a serem apuradas deficiências e identificadas medidas adequadas. Só assim se pode garantir a confiança da população e a melhoria dos cuidados de saúde. Conhecedora da gravidade do ocorrido, a ministra da Saúde tem a obrigação de liderar este processo. Se optar pela omissão, caberá ao novo Parlamento essa responsabilidade.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico 

Sugerir correcção
Comentar