Curdos

A recente operação militar norte-americana contra Abu Bakr al-Baghdadi é uma operação de diversão face ao protesto pelo abandono dos aliados curdos. Este ato coloca os Estados Unidos ao mesmo nível dos islamistas.

Porque é que os curdos são um excelente estudo de caso de política internacional? Em primeiro lugar, por serem uma das maiores minorias étnicas no mundo sem Estado. São cerca de 30 milhões, metade vive no sueste da Turquia, o resto no Iraque, Irão, Síria e Arménia, mais a emigração, sobretudo para a Alemanha. A maioria pertence à escola Shafi'i do Islão sunita, mas existem xiitas, alevitas e crentes de outras religiões. Em segundo lugar, por terem uma enorme tradição histórica, com língua própria indo-europeia, tendo migrado para a região atual desde o segundo milénio a.C. e sendo identificados como curdos desde o século VII com a islamização. An-Nasir Salah ad-Din Yusuf ibn Ayyub (1137-1193), conhecido no Ocidente como Saladino, era curdo, derrotou os cruzados e criou a dinastia Ayyubid que se estendeu da Síria e do Egito ao Iémen e norte de África. Em terceiro lugar, por terem sido o maior opositor ao Estado Islâmico na recente (e não concluída) guerra do Médio Oriente, tendo criado regiões de estatuto autónomo no norte do Iraque e da Síria. Em quarto lugar, por terem sofrido uma enorme evolução política, social e cultural no último século.

Os curdos tinham uma vida tradicional nómada baseada na pastorícia, complementada pela produção de tapeçaria. No século XIX verificou-se a sedentarização parcial da sua população, enquanto a implosão do império otomano perante a expansão russa e a difusão dos nacionalismos nos Balcãs e no Médio Oriente tornou crítica a coexistência com os turcos, que os queriam assimilar, ao mesmo tempo que os manipulavam contra as minorias cristãs da Anatólia. Curdos nómadas foram utilizados pelos turcos no genocídio dos arménios em 1915. Nos anos de 1920, a luta curda pela autonomia, expressa por diversas revoltas na Turquia, estava ligada à recusa da extinção do califado e da criação da república por Kamal Ataturk. Com o tempo, a posição política dos curdos tornou-se volátil, variando em função das condições locais.

A exclusão dos curdos da definição de fronteiras no Médio Oriente depois da I Guerra Mundial alargou a revolta a outros países, particularmente ao Iraque nos anos de 1930. Esse mesmo país registou alguma abertura em 1974 nas regiões do norte ocupadas pelos curdos. Em 1946, no Irão, a tentativa de criação de um enclave no Mahabad, com o apoio da União Soviética, falhou rotundamente, embora em 1961 tenham obtido alguma autonomia na região de Khorasan. Depois da revolução islâmica verificaram-se novas tentativas de aproveitar a rutura política, sem consequências.

O projeto político curdo foi renovado com a guerra Iraque-Irão de 1980-1988 e, sobretudo, com a primeira guerra do Golfo de 1991. Teve como resposta a política de genocídio lançada por Saddam Hussein, suscitando a proteção aérea das áreas curdas pelos Estados Unidos. Os curdos na altura tiveram melhor sorte que a maioria xiita, alvo de sucessivos ataques pelo governo de Saddam Hussein, baseado na minoria sunita. Ainda hoje se fazem sentir as consequências desse conflito confessional histórico, que justifica o apoio do Irão xiita ao governo atual do Iraque, baseado na maioria xiita, à Síria, cujo governo é apoiado pela minoria alauita (com ligação aos xiitas) e à milícia libanesa Hezbollah, apoiada pela forte minoria xiita do país (40% da população), com presença na guerra civil síria ao lado do governo.

Foi com a invasão norte-americana em 2003 que os curdos passaram a beneficiar de autonomia no norte do Iraque. A revolta contra o governo sírio em 2011 e a expansão do Estado Islâmico, tanto na Síria como no Iraque, criou uma maior visibilidade dos curdos, dada a sua capacidade de resistência militar ao Islamismo, contrária aos exércitos regulares dos dois países que se afundaram. Criaram enormes regiões autónomas no norte da Síria e no norte do Iraque. A recente invasão turca resulta justamente deste novo dado político e da oposição tradicional curda na Anatólia.

Em todos os países com minoria curda verifica-se uma forte pressão política de assimilação. A solidariedade étnica entre curdos esconde uma grande diversidade política interna. Na Turquia registaram-se algumas concessões em 1993, no seguimento da política de resistência do Partido dos Trabalhadores Curdos, fundado em 1984 por Abdullah Öcalan. Este partido, inicialmente marxista-leninista, envolvido em luta armada, sofreu uma enorme evolução que é interessante acompanhar.

Abdullah Öcalan, preso em 1999 em Nairobi pelos serviços secretos turcos com o auxílio da CIA, sobreviveu à pena de morte pois a Turquia queria aceder à União Europeia. As leituras na prisão levaram a uma profunda revisão das suas ideias, agora moldadas por um ideal socialista libertário, baseado em comunas popularmente eleitas, inspirado pela obra do norte-americano Murray Bookchin, A ecologia da liberdade (1982). O modelo político descentralizado, de democracia direta, designado como confederalismo democrático, funciona em rede. Não existe propriedade coletiva ou privada, apenas uma gestão comunal com uso privado da propriedade. A organização social promove a igualdade entre homens e mulheres, uma visão ecológica da relação com a natureza, a tolerância pluralista em matéria de religião, política e cultura.

A presença de mulheres entre as milícias curdas no norte da Síria reflete a introdução na região do novo ideário político na experiência aberta a outras etnias e forças políticas que constituem as Forças Sírias Democráticas. É em parte o impacto desta experiência, que está nos antípodas da tradição autoritária do Médio Oriente, que levou à recente invasão turca do norte da Síria, apoiada por milícias de refugiados sírios influenciados pelo Islamismo e treinados na Turquia. Nos primeiros dias da invasão turca, a líder curda Hevrin Khalaf, de 35 anos, secretária-geral do Partido Futuro da Síria, foi procurada e executada por essas milícias.

A recente operação militar norte-americana contra Abu Bakr al-Baghdadi é apresentada por Trump como um ato de justiça contra as atrocidades do Estado Islâmico. Trata-se de uma operação de diversão face ao protesto pelo abandono dos aliados curdos. Este ato coloca os Estados Unidos ao mesmo nível dos islamistas. Não terá qualquer impacto no terreno, como a execução de Osama bin Laden não teve qualquer efeito na situação do Afeganistão. Aliás, a devastação provocada pelas intervenções militares norte-americanas tem sido o melhor contributo para a expansão do Islamismo. É evidente que essas intervenções não têm nada a ver com direitos humanos mas com interesses próprios, patentes no recente reagrupamento na Síria para ‘proteção’ de poços de petróleo. Extremamente difícil será a reconstrução desses países devastados por guerras civis prolongadas pela intervenção de norte-americanos, russos, iranianos e turcos. A procura de um caminho próprio e democrático pelos curdos poderá influenciar outras populações, que têm que aprender a contar com as suas próprias forças.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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