Uma aula no Sul do Egipto

O leitor José Alberto Santos partilha a sua experiência na ilha de Philae.

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Sul do Alto Egipto, 10h55. Cais de embarque da cidade de Assuão. O Nilo está pejado de felucas, os tradicionais barcos egípcios, que esperam para nos levar até à ilha de Philae. Entramos na primeira feluca debaixo de um sol tórrido e luminoso, com 39ºC de temperatura exterior. 

Hoje a roda do destino traz-nos o conhecimento do culto da deusa egípcia do amor Ísis, que estava centralizado em Philae. Partimos e Mohamed Wahban, o nosso guia egípcio, começa por explicar que a ilha, localizada perto da primeira catarata do rio Nilo, não existe mais. Com a construção da barragem de Assuão, Philae ficou submersa, sendo que todo o seu património arqueológico foi trasladado para a ilha de Agilka, na província egípcia do mar Vermelho. E Agilka passou a ser conhecida como Philae.

Aponto rapidamente o que posso no meu diário de viagem. Tudo e todos calados, incluindo Mohamed. Depois, cortando o som do motor fora de borda da feluca, Mohamed diz-nos que Ísis era a deusa egípcia do amor, filha de Geb, deus da Terra, e de Nut, deusa do Céu. Na arte egípcia ela está representada como uma mulher com cornos de vaca. Silêncio. Tudo calado. Tudo a transpirar e a escorrer suor.

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Chegamos a Agilka. Mohamed chama pelos Descobridores, nome que ele atribui ao nosso grupo. Manda formar os Descobridores em fila e, apesar de ser bem roliço e constituído q.b., avança energicamente pelo complexo. Mohamed vai falando como se estivesse numa sala de aulas. De facto, Mohamed é professor catedrático em Egiptologia e abdicou de dar aulas na Universidade do Cairo para ser guia turístico. Melhor remuneração, menos responsabilidade, confidenciou-nos. 

Todos os templos deste complexo foram construídos em pedra arenosa e foram trazidos, pedra por pedra, para Agilka, entre 1970 e 1980. Silêncio, entrecortado aqui e ali, pelos cliques das máquinas fotográficas. Todos calados novamente. Mohamed aponta o seu ponteiro para as paredes e colunas dos templos e avisa para ninguém tocar neles com as mãos. Toda esta área é Património Mundial da Humanidade, designada pela UNESCO como Monumentos Núbios de Abu Simbel e Philae.

Aponta para o Nilo e diz-nos que a verdadeira Philae está a uns meros 300m de nós. O Templo de Ísis foi construído no reinado de Ptolomeu II, em 284-246 A.C.. Ao entrarmos no templo, Mohamed faz sinal para pararmos e diz-nos que Ísis era a deusa da maternidade, fertilidade e magia egípcia. No centro do santuário veremos depois uma cena de Ísis amamentando Horus. Por todo o lado, os Descobridores perdem-se a fotografar este complexo decorado com cenas rituais de várias divindades egípcias. Já ninguém quer ouvir o professor.

A minha família e eu seguimos Mohamed pelo complexo. Mohamed mostra-nos, gravado em baixo relevo nas paredes do templo, o rei Ptolomeu II, neto de macedónios, e a sua esposa, rezando e fazendo ofertas a várias divindades egípcias. Enquanto a maior parte dos Descobridores descobrem as sombras, Mohamed mostra-nos vestígios gregos e romanos neste templo. Do que apanhei do nosso guia e li, conto-vos que no tempo de Heródoto os gregos consideravam Ísis semelhante a Deméter, a deusa grega da Terra e da Fertilidade. No tempo do consulado de romano de Sulla, Ísis era venerada na trindade de Ísis, Horus e Serapis. Com o advento do Cristianismo, o culto foi banido.

No Mammisi, local que simboliza a casa do nascimento de Horus, o professor faz uma pausa e os alunos agradecem. Cada vez há mais calor e menos água. Depois passamos perdidos e em passo acelerado pelas Colunas de Djeb, voltando atrás para fotografarmos representações da cruz cristã na sala Hypóstila. A última matéria da aula passa por descermos umas escadas em pedra até ao Nilo para observarmos um “nilómetro”. Este equipamento de “alta precisão”, um poço visitável através de uma escada até ao nível freático do rio, era usado pelos antigos sacerdotes egípcios para obterem as previsões das inundações para a fertilização dos campos agrícolas nas margens do Nilo.

Pelas 12h18 termina a aula. Ainda me detenho junto ao templo de Trajano, com as suas 14 colunas inacabadas.

“O valor das coisas não está no tempo que elas duram mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas inconfundíveis.” (Fernando Pessoa).

José Alberto Santos

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