Toquinho fez reviver os “doces fantasmas” da sua vida numa música sem tempo

Na digressão portuguesa, Toquinho viajou entre a herança sonora dos “doces fantasmas” da sua vida e a actualidade da música que constantemente cria. Lisboa, por onde começou, aplaudiu.

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Toquinho e o seu violão num espectáculo recente RAFAEL FERREIRA/ARQUIVO

Quando se fala de Toquinho, há sempre o perigo de cometer duas injustiças. A primeira é ligá-lo exclusivamente à obra do poeta Vinicius de Moraes. E a segunda é desligá-lo dela. Resolver este dilema, não sendo fácil, é possível. Toquinho compôs com muitos outros autores, pelo que a sua parceria com Vinicius, sendo a mais duradoura, não é única – e provam-no muitos discos e canções. Por outro lado, Toquinho é co-autor de muitas das canções de Vinicius, musicando-lhe dezenas de poemas (o Livro de Letras de Vinicius, editado em 1991 pela Companhia das Letras, inventaria 85, algumas em co-autoria com outros letristas ou músicos), daí que as possa cantar também como suas. É isso que o leva a abrir os espectáculos com parte dessa memória.

Como fez, aliás, agora em Lisboa, no Tivoli BBVA, na noite de 7 de Outubro: depois de cantar Minha profissão, uma canção autobiográfica de sua autoria (“Debaixo dessas luzes coloridas,/ Nesse palco, minha vida, minha voz, meu violão./ O artista, meio mito, meio gente,/ Vira assim meio parente de uma grande multidão”) juntou em rapsódia canções que o juntaram a Vinicius, e que são indissociáveis de ambos: Como dizia o poeta, Testamento, Para viver um grande amor, Cotidiano n.º 2 e até Samba de Orly, que Toquinho escreveu com Chico Buarque mas onde Vinicius se “intrometeu” de uma forma que ficou célebre. Toquinho contou a história, como contaria ainda outras que as canções sempre trazem à tona, sobretudo nessa época de efervescente criatividade.

Foi assim: ele e Chico Buarque tinham composto Samba de Orly ainda em Itália, Chico a letra e Toquinho a música. Mas a letra só foi acabada por Chico já no Brasil, e quando este a mostrou a Toquinho, Vinicius estava com ele. Ciumento sempre das “traições” que os seus parceiros eleitos cometeriam ao compor canções com terceiros e à sua revelia, Vinicius quis logo lê-la. Pegou no papel, foi para um canto, e voltou com uma emenda: onde estava “pede perdão pela duração dessa temporada”, riscou e escreveu “pede perdão pela omissão um tanto forçada.” E, claro, pediu co-autoria. Toquinho e Chico aceitaram, mas quando a canção foi submetida à censura para poder ser gravada no álbum Construção, que Chico viria a lançar em 1971, os censores cortaram exactamente a frase de Vinicius. Alternativa? Repôr a frase anterior. Vinicius aceitou, mas disse (e Toquinho já escrevera essa frase numa edição especial do disco): “A frase pode sair, mas da parceria eu não saio, não.”

Depois de Vinicius, quem mais? Tom Jobim, com Corcovado e Garota de Ipanema, esta escrita de parceria com… Vinicius de Moraes. Círculo fechado. A entrada de Nailor Proveta em palco trouxe os engenhosos sons de Pixinguinha, sublimados pelo clarinete de Nailor (que é um músico de excelência, como muitos anos de carreira e estrada têm provado) e pelo violão de Toquinho, num diálogo emotivo e perfeito. Depois, outra canção com a respectiva história: Tarde em Itapoã. Vinicius ia entregar a letra a Dorival Caymmi para que a musicasse, mas Toquinho, num gesto de atrevimento juvenil, roubou-lha literalmente da máquina de escrever e foi para casa tentar compor a música. Tentou e ficou, porque Vinicius gostou do resultado e a canção que todos conhecem e ali se ouviu pela enésima vez tem essa música de Toquinho.

Que maravilha, parceria com bastante êxito de Toquinho com Jorge Ben (hoje Benjor), abriu depois caminho àquilo que o cantor e violonista chamou uma viagem pelos “doces fantasmas da minha vida”: históricos violonistas como Canhoto (1889-1928), Garoto (1915-1955), Paulinho Nogueira (1929-2003) ou Baden Powell (1937-2000). Ocasião para Toquinho mostrar que o violão, às suas mãos, sabe “viajar” e bem alto. Um momento de mestre, rematado com Gente humilde (com as assinaturas de Vinicius, Chico e Garoto) e Asa Branca (de Luiz Gonzaga).

Faltava um terceiro elemento: a voz da jovem Camilla Faustino, uma agradável surpresa para quem não a tinha ouvido ainda ou uma justa confirmação para os que a conheciam dos registos disponíveis nas plataformas digitais: segura, expressiva, rápida a corrigir deslizes, eficaz nos contracantos (e ouvimos vários, com Toquinho, como antes havia entre este e Vinicius), terá ainda assim de imprimir menos “nervos” ao microfone e amaciar os lances mais metálicos. Mas o seu trabalho vocal em duo com Toquinho foi meritório e digno de aplauso. E por ele passaram O velho e a flor (Vinicius e Toquinho), Chega de saudade (Vinicius e Tom) e Saudades do Brasil em Portugal (que Vinicius compôs em Portugal, com Homem Cristo).

Mais uma canção de Toquinho, Escravo da alegria (nascida de uma frase que ele viu escrita na parte de trás de um camião, na estrada: “Se o amor é fantasia eu me encontro em pleno carnaval”) e, de novo, a aura de Vinicius de Moraes: Samba da bênção, co-escrito com Baden; Samba pra Vinicius, de Toquinho e Chico Buarque em homenagem ao poeta; e Eu sei que vou te amar, um dos muitos clássicos da dupla Vinicius e Tom. E um regresso ao presente, na verdade a uma canção inédita, recém-escrita por Toquinho para os Luso Baião, um grupo brasileiro radicado em Portugal. Toquinho chamou-lhe dois Dois amores, é um samba e o cantor Betinho Mateus, dos Luso Baião, entrou em palco e cantaram-na juntos, com êxito.

O final foi, de novo, “clássico”: Berimbau, um afro-samba de Vinicius e Baden; Soneto da separação, de Vinicius e Tom; e Aquarela, de Vinicius e Toquinho, que, sob a aparência de uma canção quase infantil, esconde a tristeza de uma despedida a que ninguém se pode furtar: “E o futuro é uma astronave/ Que tentamos pilotar/ Não tem tempo, nem piedade/ Nem tem hora de chegar/ Sem pedir licença/ Muda nossa vida/ E depois convida/ A rir ou chorar// Nessa estrada não nos cabe/ Conhecer ou ver o que virá/ O fim dela ninguém sabe/ Bem ao certo onde vai dar/ Vamos todos numa linda passarela/ De uma aquarela/ Que um dia enfim/ Descolorirá.”

Mas a noite não descoloriu, pelo contrário, porque Toquinho, Camilla e Nailor ainda voltaram ao palco para um último afro-samba, com a devida reverência aos autores, Vinicius e Baden: Canto de Ossanha. Uma boa despedida, para uma noite que mereceu os seus muitos aplausos.

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