Sem licença nem parecer: parque de estacionamento em zona protegida do Douro contestado

Obra no cais da Brunheda, a cargo de uma das empresas de Mário Ferreira, avançou sem licença camarária e sem parecer da Direcção de Cultura. Há um processo de contra-ordenação a correr. BE já levou o tema ao Governo

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Câmara de Carrazeda de Ansiães admite que “a construção não tem licenciamento municipal” Nelson Garrido

O paredão de granito não passa despercebido na paisagem duriense. O parque de estacionamento no cais da Brunheda, peça do Plano de Mobilidade do Vale do Tua, levantou burburinho e motivou pedidos de esclarecimento junto da CCDR-N - Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte. Esta entidade analisou a obra e enviou um ofício à Direcção Regional de Cultura do Norte (DRCN), em Agosto de 2018, pedindo que fossem adoptadas “as medidas necessárias, face à interferência da intervenção [da empreitada] com a Zona Especial de Protecção do Alto Douro Vinhateiro – Património Mundial”. A infra-estrutura – construída pela Mystic Tua, empresa integrada no Grupo Mystic Invest e detida pelo empresário Mário Ferreira – tem um “forte impacte visual, face à altura dos muros e aos materiais utilizados”, consideraram.

A obra avançou sem licença camarária e sem parecer da DRCN, confirmaram ao PÚBLICO as duas entidades. E, sabendo da neblina sobre o caso, o Bloco de Esquerda enviou várias perguntas ao Ministério da Cultura. Os bloquistas querem saber, entre outras coisas, que medidas foram tomadas pela DRCN depois da “reclamação que lhe foi remetida pela CCDR-N”, de forma a haver “o integral cumprimento do RJUE [Regime jurídico da urbanização e edificação] e da Lei de Bases do Património Cultural”. E mais, lê-se no documento assinado pela deputada Maria Manuel Rôla há quase um mês: “Estando previstas novas operações urbanísticas de elevado impacto paisagístico por parte do mesmo grupo – em particular a construção de um hotel de elevada volumetria em Mesão Frio – que medidas vão adoptar o Governo e a DGPC para garantir a preservação da zona do Alto Douro Vinhateiro – Património Mundial da UNESCO, classificado como património de excepcional valor paisagístico e cultural?” As respostas ainda não chegaram.

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Parque de estacionamento fica junto ao Douro, em Carrazeda de Ansiães Nelson Garrido

Também a Câmara de Carrazeda de Ansiães, concelho no qual a obra está a ser feita, foi chamada a dar esclarecimentos. A obra está licenciada? Terá a autarquia que assumir algum encargo para repor a paisagem original do local?

Ao PÚBLICO, o gabinete de comunicação da câmara contou ter tido conhecimento da obra “através de uma reclamação” e confirmou que “a construção não tem licenciamento municipal”. Até agora, no entanto, a câmara “não tomou nenhuma medida de tutela urbanística”.

A DRCN confirmou também que, “até ao momento, não recebeu qualquer pedido de parecer prévio de licenciamento relativo à construção do parque de estacionamento no Cais da Brunheda, tal como seria expectável dado tratar-se de uma obra inserida em ZEP [Zona Especial de Protecção].” Esta entidade diz estar a acompanhar o assunto, “juntamente com CCDR-N e a entidade promotora da referida obra (EDP)”.

Entretanto, houve já a “instauração de um processo de contra-ordenação que tem como arguida a sociedade denominada Mystic Tua, S.A., estando a decorrer a respectiva instrução”, acrescentou a presidência da CCDR-N. A arguida está indiciada de “usos ou acções interditas em REN [Reserva Ecológica Nacional]” e, “colidindo [a obra] com a faixa de servidão da Rede Ferroviária, está em falta um parecer da Refer, localizando-se na Zona Especial de Protecção do Alto Douro Vinhateiro Património Mundial”, bem como um “parecer da DRCN”. E ainda, “encontrando-se na Faixa de Protecção à Albufeira”, um “parecer da APA/ARH [Agência Portuguesa do Ambiente] Norte, no âmbito do Domínio Hídrico.” Por tudo isto, a CCDR-N já contactou o município de Carrazeda de Ansiães para que adoptasse as “medidas necessárias para a reposição da situação inicial”.

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Nelson Garrido

A Mystic Tua tem uma visão diferente. O parque de estacionamento é “um equipamento de apoio ao cais da Brunheda”, foi “financiado integralmente pelas entidades privadas envolvidas no SMT [Sistema de Mobilidade do Tua] e é de fruição pública e gratuita”. O usufruto do parque, argumenta o gabinete de comunicação do grupo Mystic Invest, não é da empresa, mas de quem vai “beneficiar do plano de mobilidade da região”. 

O equipamento é, além do mais, “uma das obrigatoriedades impostas ao operador” no âmbito do acordo tripartido relativo ao SMT, argumenta o gabinete de comunicação da Mystic Tua. “A execução de todos os trabalhos realizados nas várias vertentes inerentes ao SMT foram, e continuam a ser, devidamente acompanhados e fiscalizados por todas as entidades envolvidas, quer no âmbito AHFT [Aproveitamento Hidroeléctrico de Foz Tua], quer no âmbito SMT”, reiteram, sem responder directamente às perguntas do PÚBLICO sobre a existência de licença da autarquia e o parecer necessário da DRCN.

O plano de mobilidade – que inclui também a construção dos diversos cais e embarcadouros, a reabilitação da via-férrea e a disponibilização dos respectivos equipamentos de transporte – foi apresentado pela EDP em sede da APA. E é “regularmente alvo de fiscalização e vistorias por parte de uma Comissão de Acompanhamento Ambiental, que reúne várias entidades públicas”, acrescenta a empresa. Assim está dito também no auto de notícia por contra-ordenação enviado pela GNR a várias entidades. Mas com uma menção que não consta na resposta da Mystic Tua: “A construção do já citado parque de estacionamento e outros não se encontra contemplada [no Plano de Mobilidade do Tua]”.

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O PÚBLICO tentou esclarecer esta e outras questões junto da APA durante a última semana, mas não obteve qualquer resposta.

Citando o PDM de Carrazeda de Ansiães, o relatório da GNR refere, além do mais, que o local de intervenção, “anteriormente ocupado por um olival”, está inserido em “espaços agrícolas”. Partiu da Liga dos Amigos do Douro Património Mundial uma das solicitações de informação enviadas à CCDR-N: “Pedimos que fosse averiguada a conformidade ou não com aquilo que são os quesitos aplicáveis à zona património mundial”, explicou o presidente António Filipe. Depois dessa queixa, não sabe ainda qual o seguimento dado ao caso. “Não nos compete fiscalizar, apenas levantamos os problemas e solicitamos a resolução”, disse deixando uma mensagem de quem se recusa a desistir do Douro: “Não temos nada contra os operadores do rio nem os empresários. Mas temos de garantir que aquilo que foram os atributos que levaram o Douro a ser património mundial sejam preservados. Iremos continuar a lutar por isso.”

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