Matérias perigosas

Descredibiliza o sindicalismo, a administração pública e o sistema de justiça que, só agora o MP e o Ministério do Trabalho se dêem conta da eventual “ilegalidade” do sindicato.

Arrasta-se o conflito laboral entre a Associação Nacional de Transportes Públicos Rodoviários de Mercadorias (ANTRAM) e o Sindicato Nacional de Motoristas de Matérias Perigosas (SNMMP). Depois de uma greve em Abril e outra em Agosto, com estabelecimento de serviços mínimos (e “máximos”), requisições civis, declaração de “crise energética” e mobilização das Forças de Segurança e até das Forças Armadas, o conflito mantém-se, com nova greve anunciada para 7 de Setembro, agora “só” ao trabalho suplementar nos dias úteis e de descanso.

Entretanto, ficou um intenso envolvimento de tentativa de acordo em mediação por parte do Governo, mormente, por parte do Ministério das Infraestruturas e do Ministério do Trabalho. No caso deste último, muito através dos respectivos serviços competentes neste domínio, a Direcção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho (DGERT).

Com uma greve anunciada, surge, agora, um novo facto neste conflito: O Ministério Público (MP), numa acção intentada no Tribunal do Trabalho de Lisboa, pediu a dissolução do SNMMP. Em causa estará a participação de um advogado na assembleia constituinte do sindicato e, daí, a eventual ilegalidade da constituição do SNMMP e dos seus Estatutos, não obstante a DGERT, em Novembro de 2018, ter registado e feito publicar oficialmente esses Estatutos [1] e, certamente, logo então, ter procedido às restantes formalidades legais, nomeadamente a remessa da respectiva certidão ao MP junto do Tribunal do Trabalho no sentido de este aferir da sua legalidade [2].

Assim, o MP instaurou uma acção declarativa de extinção do SNMMP “(...) na sequência da Apreciação Fundamentada sobre a legalidade da constituição e dos estatutos do SNMMP, a qual foi, nos termos da lei, efectuada pela DGERT - e remetida ao MP. Da análise do processo de constituição e dos estatutos da mencionada associação, concluiu-se pela existência de desconformidades com preceitos legais de carácter imperativo, designadamente a participação na assembleia constituinte de pelo menos uma pessoa que não é trabalhador por conta de outrem, no âmbito profissional indicado nos estatutos.” [3]

Não se pretende aqui, evidentemente, fazer qualquer (pretensiosa) análise jurídica desta questão. Mas, dado o quanto este conflito tem sido (e talvez pudesse não o ser, pelo menos tanto) factor de anuviamento laboral, social e político, isso não nos inibe de aqui relevar algo (pouco do rio de tinta ou de bytes doutrinário ou até jurisprudencial que – sabe-se lá - o assunto ainda talvez faça correr...) que talvez induza melhor reflexão... e, tanto quanto possível, acção no sentido de prevenir situações destas.

1) Algo elementar:
-“Os trabalhadores têm o direito de constituir associações sindicais a todos os níveis para defesa e promoção dos seus interesses sócios profissionais.” (Código do Trabalho – CT, Art.º 440.º-N.º 1);
-“Entende-se por sindicato a associação permanente de trabalhadores para defesa e promoção dos seus interesses sócio-profissionais.”(CT – Art.º 442.º -N.º 1-alínea a));
- “No exercício da liberdade sindical, o trabalhador tem o direito de, sem discriminação, se inscrever em sindicato que, na área da sua actividade, represente a categoria respectiva.” (CT –Art.º 444º-Nº1);

- “A Associação sindical só pode iniciar o exercício das respectivas actividades após a publicação dos estatutos no Boletim do Trabalho e Emprego, ou 30 dias após o registo (CT-Art. 440.º-N.º 7);

2) Algo incompreensível:
- Sendo isto (1), julga-se, tão elementar, é incompreensível que um trabalhador por conta própria, que nunca conduziu viaturas de transporte de matérias perigosas (a não ser que entenda que transporta na pasta papéis “perigosos”...) nem está qualificado e e acreditado formalmente como tal (presume-se), ainda para mais advogado (portanto, para quem, como jurista, mais elementar devia ser o que acima se citou como tal), se considere como pertencendo à categoria de “motorista de matérias perigosas” e, supõe-se, como tal se inscreva (e mantenha) como associado do SNMMP “para defesa e promoção dos seus interesses sócio-profissionais”... (de advogado ?);
- Mais elementar deveria (deve) ser, para a DGERT, dada a sua condição, oficial, de “serviço competente”. E, daí, é incompreensível que não tivesse posto em causa há mais tempo a condição desse advogado como associado do SNMMP.

Já nem se diz quando da aprovação dos estatutos e do reconhecimento da assembleia constituinte do SNMMP ou, mesmo, da publicação no Boletim do Trabalho e Emprego (BTE) [4] dos órgãos sociais (onde só constam, dos diversos elementos, o nome, o número fiscal e o cargo, no caso desse advogado o de vice-presidente, que aliás já deixou de ser, muito embora continue como associado, tanto quanto se sabe). Mas, pelo menos, quando, desde Abril (se não antes), passou a mediar as relações entre o SNMMP e a ANTRAM a propósito do conflito existente. A não ser, que - sabe-se lá - a DGERT também pressuponha que o referido advogado transporta na pasta... “matérias perigosas”;

3) Algo descredibilizador:
Descredibiliza o sindicalismo, a administração pública e o sistema de justiça que, só agora (ou, se se quiser, já, agora), com uma (nova) greve anunciada, o MP e o Ministério do Trabalho (não se sabe se por esta ordem) se dêem conta da eventual “ilegalidade” do sindicato (e, se assim for, da greve);

4) Algo errado:
É errado o caminho no sentido de que o objecto de incidência da acção pública (administrativa, judicial e política) não seja a essência deste conflito, as questões essencialmente laborais (de relações e condições de trabalho) que lhe estão subjacentes desde o início (salários, organização e duração dos tempos de trabalho e, segundo é denunciado pelo SNMMP, dissimulação de trabalho suplementar como remunerações não cativas de contribuições para a Segurança Social) e se desvie para o enfoque, primeiro, político, policial e até militar e, agora, administrativo-judicial;

4) Algo (eventualmente) compreensível:
A não ser que tudo isto se compreenda (não acredito muito) pela famigerada burocracia. É que, fartou-se de nos avisar um amigo de cabeceira, o Alex, que “Quando o burocrata trabalha é pior do que quando destrabalha.,,,” (Alexandre O’Neill – primeiro verso de GUICHÊ / 1 – em Entre a Cortina e a Vidraça, 1972). De qualquer forma, falta de noção do elementar, incompreensão, descrédito, erro e burocracia são, laboral, social e politicamente (e, daí, não só), “matérias perigosas”.

[1] Boletim do Trabalho e Emprego N.º 41, de 8/11/2018

[2] Nº 4 do Art.º 447.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro.

[3] Nota constante do site da Procuradoria da República da Comarca de Lisboa de 28/8/2019 - http://comarca-lisboa.ministeriopublico.pt/pagina/acao-declarativa-de-extincao-de-associacao-sindical-mp-juizo-do-trabalho-de-lisboa

[4] N.º 42 de 15/11/2018

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