Criminoso ou denunciante? A ilusão do justiceiro privado

Não há, definitivamente, uma carta-branca para o cidadão comum levar a cabo as suas próprias investigações criminais. Mesmo quando obtenha informações suscetíveis de demonstrar a existência de crimes!

A propósito de vários escândalos recentes, nacionais e internacionais, muito se tem falado sobre a figura do denunciante e em que medida o interesse público das informações expostas por essa figura poderá sobrepor-se a eventuais atos criminosos praticados para as obter.

Do ponto de vista da lei portuguesa, não se descortina um qualquer estatuto do denunciante que leve à isenção sistemática da sua responsabilidade criminal. Embora possa haver uma dispensa de pena em casos muito específicos – como por exemplo, corrupção – desde que se cumpram apertados pressupostos, a verdade é que se trata de uma situação excecional.

É este o ponto de partida que temos de assumir e a nova diretiva relativa à proteção das pessoas que denunciam infrações ao direito da União Europeia, aprovada pelo Parlamento Europeu, em abril de 2019, não muda este estado de coisas. Na verdade, o que esta diretiva vem trazer é um conjunto de regras mínimas que os Estados-membros da União Europeia devem incorporar nas suas ordens jurídicas de modo a fomentar a denúncia de atividades ilícitas como o branqueamento de capitais ou o terrorismo.

De que modo? Concedendo maior proteção dos denunciantes, em regra trabalhadores de uma entidade do setor público ou privado, contra atos de retaliação, direta ou indireta, pelo empregador ou destinatário dos serviços prestados. Trata-se de uma proteção contra o empregador ou destinatário dos serviços, e não contra a ação penal do Estado, que tem, como nós sabemos, a tarefa indeclinável de aplicação da justiça.

Por essa razão, não há, definitivamente, uma carta-branca para o cidadão comum levar a cabo as suas próprias investigações criminais. Mesmo quando obtenha informações suscetíveis de demonstrar a existência de crimes! As consequências de uma conclusão contrária seriam profundamente nefastas. Pense-se o que seria termos na nossa sociedade justiceira que, sob a capa da justiça e da verdade, decidem arbitrariamente invadir os nossos computadores, smartphones, ou qualquer outro dispositivo em relação à qual confiamos – bem ou mal – os nossos segredos. Mais do que afirmar a clara violação dos mais elementares princípios de processo penal, o que deve aqui perguntar-se é se os fins justificam os meios.

Justifica-se a devassa da vida privada e dos segredos comerciais desde que se encontre material incriminatório? E se a investigação for infrutífera?

E já agora, colocando em cima da mesa a hipótese da legalidade da prova obtida desta forma, será comunitariamente suportável que um cidadão privado tenha poderes de investigação criminal mais amplos do que as autoridades judiciárias e policiais? Não vejo como é que se pode sequer admitir esta possibilidade, pelo menos no quadro do Estado de direito democrático constitucionalmente consagrado em Portugal. Por muitas crises que a justiça estatal experiencie...

O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico.

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