Mais um caso de “asfixia democrática intrajudicial”?

Só que o “dono do texto do acórdão” é sempre o seu relator, que tem o direito de fazer impor a sua vontade sobre o seu discurso escrito, o que nada tem de autoritário.

1. Foi com particular surpresa que a opinião pública ficou a saber, por uma notícia do Público, qual havia sido um dos fundamentos para a repentina renúncia de Clara Sottomayor ao cargo de juíza conselheira do Tribunal Constitucional.

Diz esse prestigiado jornal que a saída desta magistrada se ficou a dever ao facto de ter sido “ameaçada com um processo disciplinar” pelo Presidente do Tribunal porque este, supostamente, queria que escrevesse ou mudasse certas palavras no texto do acórdão de que ficou relatora sobre a inconstitucionalidade do acesso dos serviços de informações aos metadados, hipótese de levantamento de um processo disciplinar que teria sido formulada como resposta à suposta recusa daquela magistrada em fazê-lo.

2. As decisões do Tribunal Constitucional têm duas partes fundamentais: (i) a parte da decisão, na qual se decide se há ou não inconstitucionalidades (e ilegalidades, se for o caso); e (ii) a parte da fundamentação (não contando ainda com o chamado “relatório”, uma primeiríssima parte descritiva sobre a sucessão de factos que antecedem a intervenção processual do TC).

Como se trata de um órgão colegial, a deliberação é feita pela junção dos votos individuais dos seus 13 juízes nessas duas dimensões, devendo a fundamentação a escolher adequar-se à decisão tomada (por maioria ou por unanimidade).

3. Neste caminho, há alguém escolhido para elaborar um projecto de texto do acórdão, que tem uma “proposta de decisão e de fundamentação”. Toda a liberdade tem de existir tanto na decisão como a fundamentação.

É óbvio que só o próprio juiz escolhido pode escrever o texto do acórdão, que envolve um discurso jurídico de elevada complexidade, ainda que o coloque à consideração dos colegas, havendo muitos casos em que dessa discussão nasce um texto final aprimorado, mais completo e profundo.

Só que o “dono do texto do acórdão” é sempre o seu relator, que tem o direito de fazer impor a sua vontade sobre o seu discurso escrito, o que nada tem de autoritário.

No limite, até pode haver uma maioria a favor da decisão proposta no texto de um acórdão, e uma maioria contra a fundamentação que no mesmo reside. No limite mesmo, pode haver mesmo a mudança do relator.

4. É por isso que falar em processo disciplinar contra um juiz relator que, considerando a essencialidade de frases ou ideias para o texto que escreve, não aceita a imposição de frases ou palavras de outrem é esdrúxulo e indigno da independência dos juízes: a solução é a do voto contra a fundamentação, não decerto a de encontrar no facto uma infracção disciplinar, com uma perspectiva visivelmente censória.

Mas este triste acontecimento deve ser observado à luz da “independência intrajudicial”, de que pouco se fala, uma vez que a independência da magistratura não é apenas ad extra, perante os outros poderes, públicos ou privados.

Ela é também uma independência ad intra: vertical, com os juízes e tribunais superiores; e horizontal, no diálogo com os juízes colegas de um órgão colegial, sendo o caso.

Esta independência concretiza-se na necessidade de os juízes se respeitarem entre si e de se responsabilizarem por aquilo que cada um faz, o que não sucede quer quando aderem acriticamente aos textos de outros – e depois vêm dizer que não sabiam (o que não é raro…) – quer quando ameaçam os colegas que não queiram considerar as suas palavras na redacção de um texto que não é da sua autoria.

Não deixa de ser confrangedor o ponto a que se chegou na redução da independência dos juízes, a ser verdadeira aquela notícia, pelos vistos já não podendo um juiz escolher as palavras de um texto que se apresenta da sua autoria, gravidade extrema por aqui tratar-se do Tribunal Constitucional.

Realmente, a vida nunca para de nos surpreender, sobretudo a vida judicial…

Professor Catedrático e Advogado

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