Méritos e deméritos da meritocracia (ou as razões para a discriminação positiva)

A condição de nascimento influencia, e muito, as oportunidades que nos surgem na vida, mas influencia, sobretudo, as ferramentas de que dispomos para aproveitar essas oportunidades.

É curioso como, na sociedade portuguesa, muitos dos paladinos da meritocracia, nomeadamente, aqueles que se manifestam contra toda e qualquer forma de discriminação positiva, contrapondo-lhe, ultrajados, a inigualável virtude do mérito, enquanto forma de afirmação social, tiveram, certamente por força de “infortúnio” de nascimento, pouca oportunidade de verdadeiramente atestar, perante a sociedade, esse mérito próprio, certamente elevado, mas, veja-se bem, e aqui reside o “infortúnio” das ditas criaturas, susceptível de ser confundido com o apelido ou com a pertença a uma certa “estirpe”.

Uma verdadeira condenação, esta de poderem os seus percursos (brilhantes, todos eles) ser tomados, simplesmente, como resultado de uma certa “alavancagem” (para ser generosa utilizo esta expressão, que além de estar muito em voga é bastante mais politicamente correcta do que a costumeira e portuguesíssima “cunha”) por esses mesmos apelidos ou essa mesma pertença de “estirpe”.

E esta é a “estirpe” de uma elite pequena (e aqui uma eventual redundância foi intencional, para reforçar o seu carácter realmente muito reduzido), endogâmica do ponto de vista social e político e, curiosamente, muita dela herdada, ainda, daquela que era a elite do Estado Novo…

Nestes casos, e para os oriundos desta “estirpe”, esse mérito, que seguramente existe (honi soit qui mal y pense!), é fruto das condições vantajosas em que se nasce, facilitadoras do acesso ao conhecimento (saber), à cultura (mundo) e aos conhecimentos (relações sociais).

Como se vê, a condição de nascimento influencia, e muito, as oportunidades que nos surgem na vida, mas influencia, sobretudo, as ferramentas de que dispomos para aproveitar essas oportunidades.

O topo da pirâmide social tenderá, assim, a perpetuar-se nesse topo, como aprende qualquer aluno de primeiro ano de uma licenciatura em Sociologia, e como sabemos todos, por simples intuição ou por sumária atenção à realidade que nos rodeia.

Ora, se esta é uma verdade para o topo da pirâmide social, é mais do que provável, se medidas eficazes de igualização e justiça social não forem adoptadas, o risco de ocorrência de fenómeno semelhante, na sua base, com a perpetuação de sucessivas gerações nas camadas mais baixas da estratificação social, sendo residuais e, por isso, amplamente alardeados e dignos de verdadeiro foguetório mediático, os casos em que a barreira se vence e a ascensão ocorre.

E mantêm-se na base da pirâmide social, os que nela nascem, não porque não têm capacidades, não porque são “burros” ou “preguiçosos”, não porque são “pretos” ou “ciganos. Mantêm-se, simplesmente, porque foi aí que nasceram: na base.

E, nessa base, não têm igual acesso ao conhecimento (saber), à cultura (mundo) e aos conhecimentos (relações sociais).

Ou melhor, têm acesso, sim, ao saber, mas apenas a um saber apressado, confuso, sem relação com a sua realidade ou com o seu quotidiano e que, por isso, se lhes afigura destituído de sentido, e que é, afinal, o saber que lhes é transmitido pelos curricula escolares (desenhados para o aluno médio – social, cultural e economicamente médio).

E têm acesso, sim, ao mundo, mas apenas a um mundo que lhes salta dos ecrãs: esse mundo feito de informação fácil e instantânea e de verdades absolutas, fundadas em rumores, em banalidades e em preconceitos.

E, naturalmente, têm acesso, também, aos conhecimentos, mas apenas àqueles que estabelecem com os que se encontram em circunstâncias e contextos de vida semelhantes aos seus, porque as afinidades electivas assim o favorecem e os habitus assim o condicionam.

As medidas de discriminação positiva são, por isso, uma forma de neutralizar os efeitos prováveis da reprodução da desvantagem social para grupos específicos que, por condição de nascimento (ou outra), possam ver dificultada a sua progressão social, ou possam ver limitada a realização do seu pleno potencial, enquanto pessoas.

São, sim, um processo de alavancagem, mas de alavancagem da possibilidade de demonstrar verdadeiramente o mérito.

E são, sobretudo, um processo para mudar mentalidades, ou seja, para que, no futuro, se atenue a sobre-representatividade de uns grupos, relativamente a outros, em determinadas posições, profissões, cargos ou funções sociais.

E, como tal, são (ou devem ser) medidas temporárias, prolongando-se, somente, pelo tempo necessário para se criarem novos habitus, aqueles que “naturalizam” a presença desses grupos específicos nessas posições, profissões, cargos ou funções sociais.

Não são, ao contrário do que afirmam os seus detractores, os tais paladinos da meritocracia como valor absoluto, uma forma (paternalista) de catapultar socialmente os “incapazes”.

A questão é que estas medidas de discriminação positiva, nos seus propósitos de igualização e justiça social, ao neutralizarem as condições de desvantagem por razões de nascimento, acabarão, também, por neutralizar as condições de vantagem por essas mesmas razões. E, se calhar, é exactamente aí que reside a ameaça…

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