Chefe das Forças Armadas diz que a situação “é insustentável”

Almirante Silva Ribeiro, chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, diz que com 156 comandos em missão internacional de paz na República Centro-Africana a 10 de Junho apenas sobravam 60 praças no regimento de elite.

Em 34 minutos de entrevista — que será emitida pela Renascença esta quinta-feira às 13h —​, não é fácil passar em revista a situação das Forças Armadas. Há pouco mais de um ano como chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), o almirante Silva Ribeiro destaca o comportamento extraordinário dos seus militares, num cenário de penúria. Há aspectos positivos, a comunicação de uma imagem que não se fica pelo trágico, sejam as mortes de comandos em treino ou o furto dos paióis de Tancos. No discurso do CEMGFA desfila a falta de recursos humanos, de adesão à carreira, a dificuldade de nela permanecerem, as discrepâncias entre os salários dos militares e da PSP e GNR que levam as praças a desertar das fileiras a cada concurso da polícia e da Guarda. Há pouco mais de 26 mil dos 32 mil efectivos previstos. A situação das Forças Armadas (FA) é “insustentável”.

Assumiu o cargo há pouco mais de um ano, após as mortes nos comandos e o furto de Tancos. Como geriu este desgaste?
Essas e outras questões, às vezes menos mediatizadas, são complexas e inaceitáveis para as Forças Armadas que levaram a uma reflexão e a medidas para evitar esses problemas. Estamos a criar condições para que não se repitam e a focalizar os militares no cumprimento das suas missões. Existimos para servir os portugueses. Tem sido essa a nossa grande medida, que teve como consequência a recuperação da imagem das FA conseguida pelo extraordinário desempenho dos nossos militares.

Tancos revelou a fragilidade das Forças Armadas em meios e recursos…
Revelou o principal problema, a falta de recursos humanos. Claro que em Tancos há coisas além disso, mas as Forças Armadas vivem com um défice muito elevado: no Exército, faltam 4100 praças, na Marinha 535 e na Força Aérea cerca de 950. São essencialmente praças pela falta de atractividade da carreira, o que impede de assegurar todas as missões e serviços com o nível de eficácia que gostaríamos. Por isso, estamos num grande esforço de abertura à sociedade e de repor condições para atrair e reter os jovens.

Os números não melhoraram…
Até pioraram…

Qual é o défice fundamental? A aproximação das Forças Armadas à sociedade civil, a abertura da sociedade aos militares?
É tudo isso. Desde que sou chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas lancei, com os chefes militares, iniciativas de abertura à sociedade. Fizemos o 4 de Novembro para assinalar os 100 anos do armistício, temos três programas – Alista-te por Um Dia, para os jovens da escola primária; Cidadania e Forças Armadas, para os estudantes do secundário; e Portugal e Forças Armadas, para os do ensino superior –, iniciámos a abertura das unidades militares aos cidadãos. Os chefes militares, sobretudo eu, têm divulgado as FA, as operações. Temos explicado o extraordinário trabalho que os militares fazem no nosso território e no estrangeiro, na NATO, ONU e União Europeia.

Além do recrutamento, há a retenção…
É preciso condições para que os jovens tenham carreiras no Exército e na Força Aérea, que não têm quadros permanentes de praças. Na Marinha há a carreira de praças e, mesmo assim, tem 535 faltas. É preciso rever os vencimentos. A discrepância entre o de uma praça do quadro permanente e um agente da PSP ou guarda da GNR é, na mesma categoria, quase de 400 euros. Por isso, este ano o Exército já perdeu 800 praças, porque, quando abre concurso na PSP e na GNR, as praças concorrem.

Foto
DANIEL ROCHA

Tem garantias de que se vai resolver?
Estamos a trabalhar com o Governo, os assuntos estão a ser colocados à tutela. Há que resolver a discrepância entre corpos do Estado com funções equivalentes. O assunto está a ser trabalhado com o ministro da Defesa. Agora não é a época adequada para propostas, temos a campanha eleitoral. Além disso, há outras questões: as infra-estruturas, os alojamentos estão degradadas e os jovens não estão dispostos a viver em instalações daquelas.

Um serviço cívico e militar resolveria a falta de efectivos?
Não consideramos que seja a forma de resolver. Um serviço cívico como existe em França deve levar a uma reflexão. Porque é que estes países estão a criar condições para que os jovens prestem este serviço, parte dele nas Forças Armadas? As FA podem contribuir bastante para a formação técnica, ética, moral, social e cívica…

Mas Serviço Militar Obrigatório, não?
É uma questão política. As FA encararão de acordo com o que for decidido do ponto de vista político. Daremos contributos, mas quero deixar bem claro que as Forças Armadas não são o local para resolver problemas de desinserção familiar, educação e formação cívica que devem ser resolvidos nas escolas. As FA podem dar um contributo, mas antes existem as famílias e as escolas.

O combate aos incêndios aumentaria a visibilidade, mas há militares que o consideram como menorização.
Acredito que haja quem pense assim, mas não é o caso dos chefes militares. O apoio à protecção civil é uma missão que foi atribuída pelo Governo e está instituída por lei. As FA cumprem-na com tanta vontade e empenho como qualquer outra. Quem faz esse tipo de comentário está preocupado com o facto de as FA perderem capacidades militares e de só virem a receber meios relacionados com a protecção civil. Mas isso não vai acontecer, porque a grande vantagem das Forças Armadas é a sua natureza militar de cumprir missões, a possibilidade de utilizar meios militares em tarefas civis. Em Pedrógão, em 2017, [as FA] foram activadas ao meio-dia e às oito da noite já estavam a servir alimentação aos bombeiros. Depois estiveram nas comunicações, no rescaldo, na vigilância das matas, no que era necessário. São os bombeiros que sabem combater os incêndios, não os militares. Estes podem, fruto das suas capacidades, criar condições para quem tem de acorrer a emergências civis.

Também vai haver missões com as forças de segurança…
Há acordo entre a secretária-geral do Sistema de Segurança Interna (SSI) e o CEMGFA, entreguei na segunda-feira ao senhor ministro o documento e esperamos a aprovação. Dentro de dias, se politicamente o documento for considerado aceitável, será assinado. Demorámos mais de um ano, porque havia preconceitos de parte a parte. Os militares tinham receio de serem comandados por polícias; os polícias – que durante muito tempo foram comandados por militares – temiam que estes, chegados ao terreno, quisessem comandar as operações. Desconfianças de décadas foram ultrapassadas, por relacionamentos pessoais e institucionais entre a PSP e a GNR e os mais altos cargos das FA.

Em que condições é feita a cooperação? 
Quando as forças de segurança não tenham capacidade de cumprir as suas missões, seguindo uma cadeia de decisão política, com certeza. As forças de segurança, através do SSI, solicitam ao CEMGFA o empenho das FA através de oficiais de ligação com base nas regras de empenhamento. É em condições extremas, que não têm que ver com o estado de sítio e o estado de emergência. Por exemplo, num atentado terrorista como ocorre em Bruxelas, Paris, nos Estados Unidos.

O acidente do soldado Aliu Camará na República Centro-Africana impressionou o país. Ele vai ser integrado no quadro permanente para garantir o seu futuro?
Vai, esse e outros. O conselho de chefes está a rever a legislação para que os militares nestas circunstâncias que não sejam do quadro permanente em regime de contrato transitem para o quadro permanente e tenham uma carreira devidamente protegidos. Aliu Camará tem mais três anos de contrato ao fim dos quais ficaria num profundo desamparo com uma pensão reduzidíssima de deficiente das Forças Armadas. Esperamos até ao fim do ano ter isto resolvido, o senhor ministro está muito empenhado e até gostaria que fosse nos próximos dois meses. Vamos ver se é possível, porque é preciso alterar a legislação que é muito complexa.

Além da República Centro-Africana, temos militares no Afeganistão, Iraque e Mali. São missões para continuar?
Sim, recebemos orientações políticas do Governo para as Forças Nacionais Destacadas para 2020 idênticas às de 2019. Na República Centro-Africana fizemos a diferença, foram as intervenções competentes e robustas dos nossos militares que contribuíram para que os grupos armados se sentassem à mesa das negociações.

Foto
Almirante Silva Ribeiro Daniel Rocha

Há capacidade para tantas missões?
É a grande preocupação que tenho como comandante operacional. Os Comandos têm 156 praças na República Centro-Africana e no regimento de Comandos só têm mais 60. O problema mais grave das FA é a falta de recursos humanos. Com os que temos vamos cumprindo as missões, só que isto leva a um esforço tremendo. Não temos os 32 mil efectivos que devíamos, só 26 mil, e os que temos têm de repetir muitas vezes as missões. Já era a segunda vez que Aliu Camará estava na República Centro-Africana. Em combate, o stress psicológico é tremendo e tem de se dar mais do que um ano de intervalo.

Nestas missões, os militares recebem mais dinheiro, e há a expressão de que “vamos cumprindo”. Até quando?
Isto é insustentável. Temos alertado o Governo de que esta situação tem de ser parada, estamos em risco de desequilíbrio entre as missões e os meios humanos. A realidade dos efectivos é absolutamente insuficiente. Não tem que ver com as forças destacadas, mas com o conjunto de missões. Recentemente recusámos um pedido da Protecção Civil de mais militares para patrulhas de vigilância. Esta situação é insustentável. É o problema mais premente das FA que os chefes militares e também os responsáveis políticos estão empenhados em reverter. É uma situação que não é de hoje e se tem vindo a degradar há anos.

Como está a questão do Hospital das Forças Armadas (Hfar)?
Está a ser resolvida. A reforma da saúde militar de 2011 sofreu atrasos, levou à fusão dos três hospitais, o plano funcional do Hfar não foi completado e temos um problema de sustentação financeira. Esta semana vou apresentar ao senhor ministro da Defesa um plano de financiamento do hospital, que envolve o Instituto de Apoio Social das Forças Armadas e a Assistência na Doença aos Militares, no qual está tipificado quem sustenta as despesas de saúde dos militares.

Mantém o apoio à directora do Hfar?
A dr.ª Regina tem exercido o cargo com grande esforço e com imensos problemas, porque a situação é muito difícil. O grande problema com que tem lidado tem de ser resolvido. Oo Hfar tem de ter competências de gestão, de administração hospitalar. Defendo que o hospital tenha um conselho de administração e gente, civil ou militar, com competências de gestão. A brigadeiro Regina já mandou médicos tirar o curso de administração hospitalar e eu também o solicitei aos ramos.

Sugerir correcção
Ler 39 comentários