Ligeiros e pesados – formas diferentes e complementares de ver a Mobilidade

A questão, nesta altura, já não é questionar se vão acontecer alterações radicais no mundo em que vivemos – é muito mais perceber quando é que vamos usufruir de todas as vantagens que o desenvolvimento tecnológico e a reorganização em curso nos vão trazer.

Nos conceitos de mobilidade que hoje em dia despontam, incluem-se o tipo de propulsão, a partilha, a conectividade e o nível de autonomia, conceitos que se aplicam tanto aos ligeiros como aos pesados, embora de formas diferentes.

A propulsão nos ligeiros caminha a passos largos para formas mais amigas do ambiente, tudo indica nesta altura que a eletricidade será, pelo menos nos próximos anos, a fonte energética que vai dominar na área dos ligeiros, se bem que existam muitas dúvidas no que diz respeito ao total da pegada ecológica e às infraestruturas necessárias para se passar para uma mobilidade elétrica. Em concreto, se a evolução for exponencial, dificilmente haverá capacidade de produção e de distribuição para fazer face à nova procura, e o que hoje parece uma boa ideia pode transformar-se num pesadelo.

Já sobre a partilha, assistimos no presente a uma grande dinâmica, onde conceitos como o carsharing (partilha do carro), ridesharing (partilha da rota) ou ride hailing (táxi) assumem uma preponderância cada vez maior, muito em linha com o que acontece em muitas outras áreas da nossa vida quotidiana, onde a economia partilhada (leia-se o uso racional dos recursos) está a trazer ganhos de eficiência no que concerne à sua utilização. A evolução de noções de ownership para usership é uma realidade que vem questionar todo o setor dos transportes, desafiando a exploração irracional dos veículos.

A conectividade, por sua vez, tem vindo em crescendo. Primeiro era num só sentido (as velhas notícias de trânsito, geolocalização), depois cruzando a geolocalização com dados dinâmicos (trânsito, meteorologia, indisponibilidade momentânea de rotas), para, aos poucos, com a presente emergência da tecnologia 5G, que possibilita o tratamento simultâneo de uma quantidade impressiva de dados, ser entre veículos e entre estes e as plataformas, nos dois sentidos.

E este tipo de conetividade será imprescindível para a elevação do nível de autonomia dos veículos, ou seja, caminhamos para um tempo (ainda não estamos lá) em que veículos e plataformas estarão continuamente a debitar e a receber informação que, uma vez assimilada, com base em machine learning e, mais amplamente, em inteligência artificial, servirá de base a um padrão comportamental do veículo, que incorporará ainda desejos e preferências dos transportados. O desenvolvimento tecnológico é vertiginoso, marcas e empresas de software estão a trabalhar cada vez mais em parceria para lançar produtos que serão muito mais do que veículos, dada a base tecnológica que terão por trás, havendo justificados pontos de interrogação sobre se os Estados são capazes de acompanhar em termos regulatórios o desenvolvimento a que se assiste nesta altura.

No que diz respeito aos veículos pesados, nomeadamente aos veículos de transportes de mercadorias, aplicam-se os mesmos conceitos, embora com abordagens distintas.

Sobre a propulsão, não é líquido nesta altura que a solução elétrica seja a que venha a vingar, existindo amplo debate sobre o tema. Na distribuição local, é de prever que os veículos pesados sigam a mesma lógica dos ligeiros, e que a propulsão elétrica impere, mas no médio e longo curso existem dúvidas, visto a oferta a hidrogénio apresentar resultados animadores. É preciso levar em linha de conta que as necessidades energéticas de um pesado nada têm a ver com as necessidades energéticas de um ligeiro, podendo precisar de cinco vezes mais energia e muitas vezes em locais de abastecimento longínquos, o que amplia a imprevisibilidade de fornecimento já referida nos ligeiros.

Relativamente à partilha, o mundo dos pesados há muito tempo que usa racionalmente os seus recursos; aliás, a eficiente utilização dos meios de transporte é precisamente o que caracteriza as melhores empresas no mercado. Tal pode ser aferido pelo enorme número de kms anuais que um camião percorre, e pela busca constante que estas empresas fazem para evitar viagens em vazio, ou seja, quem opera veículos pesados são empresas, as empresas para existir têm de apresentar preços competitivos no mercado, e para tal têm de ter uma estrutura de custos só possível se utilizarem em pleno os seus veículos, o que é uma situação que, pelo menos no presente, está nas antípodas do que acontece no mundo dos ligeiros.

Também no que diz respeito à conectividade, os pesados já estão numa posição de charneira, operando numa base tecnológica já com alguma sofisticação, pois no presente as frotas já dispõem de avançados sistemas de geolocalização, essenciais para a escolha das melhores rotas, as que racionalizam numa ótica de custo e tempo pontos de carga e descarga (que derivam de ligação a bolsas de cargas), trânsito e rotas viáveis para pesados, portagens, abastecimentos de combustível e tempos de condução.

Sobre a condução autónoma, à semelhança dos ligeiros, o mundo dos pesados ainda está, em termos gerais, numa fase de testes, tendo já sido lançadas inovações que visam a recolha de dados e aferir a aderência à realidade. Um dos desenvolvimentos é o Platooning, onde um camião faz de guia a uma série de camiões sem condutor que o seguem, e mais conceitos de condução autónoma em pesados se seguirão, dado o peso do motorista no total dos custos de operação de um veículo pesado. No entanto, por causa da multiplicidade de ambientes por onde circulam para assegurar o chamado porta à porta, e da importância do motorista nas tarefas de carga e descarga, que podem ser complexas, é de prever que a generalização da autonomia total leve mais tempo do que nos ligeiros. Excluem-se aqui os pesados que trabalham em ambientes circunscritos, como por exemplo os camiões de recolha de resíduos sólidos urbanos. À semelhança dos ligeiros, o contexto regulatório será aqui decisivo, pois para além da idêntica dificuldade que já existirá para regular os ligeiros, os países terão de se entender quanto aos pesados, cuja vida é cruzar fronteiras, não podendo haver regras muito diferentes de país para país, sob pena de ser travado todo o processo de autonomia dos veículos pesados.

Ligeiros e pesados são assim mundos diferentes, mas com múltiplos pontos de contacto, o desenvolvimento num lado beneficiará o outro, sendo que a referida disrupção só existirá efetivamente quando de um lado e do outro se atingirem os benefícios económicos, sociais e ambientais resultantes da confluência das quatro referidas forças – propulsão ecológica, partilha, conetividade e autonomia. Nesta altura, os ligeiros poderão ter vantagens na propulsão e na autonomia, enquanto os pesados estarão melhor posicionados na partilha e na conetividade.

A questão, nesta altura, já não é questionar se vão acontecer alterações radicais no mundo em que vivemos –​ é muito mais perceber quando é que vamos usufruir de todas as vantagens que o desenvolvimento tecnológico e a reorganização em curso nos vão trazer.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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