Fazer o oposto de Trump

Se Trump fez bem em rejeitar o status quo insustentável desta globalização, ele optou por caminhar na direcção precisamente oposta à da defesa do interesse público. Urge fazer exactamente o contrário.

Nas economias dos países desenvolvidos em geral, a mediana dos salários reais (ajustados à inflação) tem-se mantido aproximadamente constante desde a década de 80, apesar do PIB real destas economias ter mais do que duplicado no mesmo período. Isto contrasta com as décadas anteriores, em que a generalidade dos salários reais aumentava ao mesmo ritmo que a produtividade e o PIB. Se a mesma relação se tivesse mantido, os trabalhadores em geral teriam hoje mais do dobro do poder de compra actual, ou poderiam trabalhar cerca de metade das horas que trabalham para garantir o mesmo poder de compra. Este acentuar da discrepância entre a mediana dos salários e produtividade constitui um “puzzle” que intriga os economistas actuais.

Várias respostas têm sido dadas a esta questão, mas ninguém nega que a forma como temos colectivamente construído a globalização (em particular no que concerne ao comércio internacional) é um factor da maior relevância, quer no facto de os salários terem deixado de acompanhar a economia, quer no significativo aumento das desigualdades entre patamares de riqueza e património dentro de uma mesma economia. De facto, se nas décadas do pós-guerra a proporção de rendimento dos 10% mais ricos estava relativamente estável, desde os anos 80 esse valor foi aumentando consideravelmente nas várias economias estudadas por Picketty (EUA, França, Alemanha, Reino Unido, etc.), atingindo hoje valores semelhantes aos que existiam antes da Segunda Guerra Mundial (e que poderão ter contribuído decisivamente para o florescimento das ideologias xenófobas que lhe deram origem).

No entanto, quiçá mais grave ainda do que a contribuição dada para o aumento avassalador das desigualdades e para a estagnação dos salários, tem sido o impacto ambiental insustentável resultante da forma como estruturamos o comércio internacional. O actual nível de emissões de CO2 ou equivalentes (se não for travado) irá dar origem a danos materiais e humanos que em muito superam os sofridos pela Humanidade durante a segunda guerra mundial. No entanto, as alterações climáticas estão longe de ser o único desafio ambiental de proporções planetárias seriamente agravado por esta forma de globalização que vem sendo realizada. É cada vez mais urgente uma globalização muito diferente.

Nos EUA, a frustração com os impactos da globalização foi um dos factores que contribuiu decisivamente para a vitória de Donald Trump. Porém, a política comercial de Trump tem sido verdadeiramente catastrófica. A subida das taxas aduaneiras tem sido errática, precipitada, inconsequente. Pior: subjacente a estas subidas está uma postura de rejeição do multilateralismo; uma crença na ideia de que o comércio é um jogo de soma nula em que uns países ganham à custa dos outros, sem que ambos possam perder ou ambos possam ganhar; e um profundo desprezo pela necessidade de diminuir o impacto ambiental da actividade económica.

Se Trump fez bem em rejeitar o status quo insustentável desta globalização, ele optou por caminhar na direcção precisamente oposta à da defesa do interesse público. Urge fazer exactamente o contrário.

Quando pensamos no comércio internacional entre dois países é fundamental rejeitar a noção de soma nula. Um mau acordo pode prejudicar as populações de ambos os países para benefício de um punhado de multinacionais, mas um bom acordo poderia trazer benefícios a ambas as partes. Por esta razão, importa rejeitar pressupostos nacionalistas ou xenófobos e partir de uma perspectiva universalista e solidária. É fundamental combater o progressivo esvaziamento da Democracia e empoderar a população e a sociedade civil no delinear da política comercial.

O que é que isto quer dizer em concreto? Isto significa rejeitar uma política aduaneira ad hoc ou inconsequente, para, ao invés, adequar as taxas aos impactos ambientais do transporte e à necessidade de evitar fenómenos de dumping ambiental ou social. Isto conduziria a uma diminuição acentuada do impacto ambiental da actividade económica (evitando a destruição míope do património natural colectivo), ao mesmo tempo que conduziria a um uso mais eficiente dos recursos.

Muitos tratados comerciais (CETA, JEFTA, etc.) estabelecem formas de “harmonização regulatória” entre os vários países envolvidos para facilitar o comércio, mas negoceiam a forma como essa harmonização tem lugar dando ouvidos aos lobistas dos grandes negócios e ignorando a sociedade civil. No processo, perdem as populações. Ora se as populações e a sociedade civil estiverem envolvidas nas negociações, elas podem defender uma harmonização que se paute por regulamentações mais exigentes do ponto de vista da protecção do ambiente, da saúde pública, dos direitos laborais, dos direitos humanos, dos direitos dos consumidores, etc. Actualmente, a harmonização ocorre privilegiando a legislação mais laxista e evitando envolver as populações. Urge fazer o oposto.

Por fim, em todos os acordos devem ser rejeitados os mecanismos de resolução de litígios (ISDS e semelhantes) que estabelecem um sistema de justiça paralelo ao serviço das empresas multinacionais contra os Estados, com graves problemas de falta de transparência, inaceitáveis conflitos de interesses e gravíssimos prejuízos para a legislação ambiental, laboral, de defesa dos direitos humanos, entre outras.

Os Estados deveriam antes empenhar-se na concretização das propostas do Conselho de Direitos Humanos da ONU relativamente ao estabelecimento de um Acordo Vinculativo sobre empresas transnacionais e cumprimento dos direitos humanos.

Sim, devemos rejeitar o actual status quo insustentável, mas caminhar para um mundo mais solidário, mais consciente relativamente aos impactos ambientais e muito mais democrático.

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