Os sucessos e os calcanhares de Aquiles do PS

A consumada habilidade de Costa e o desnorte da maioria da oposição não serão suficientes para disfarçar um futuro ambiente de anarquia governativa e administrativa.

Além de ter vencido de forma indiscutível as eleições europeias, o PS vem conquistando um estatuto internacional que ultrapassa a dimensão e a influência externa tradicional do país. Esse estatuto deve-se à conjugação de vários factores, mas um dos mais decisivos será, sem dúvida, a forma eficaz e insinuante como António Costa tem sabido gerir a sua relação institucional e até pessoal com alguns protagonistas da cena europeia.

Já depois das eleições e perante o complexo processo de designação dos novos líderes das instituições europeias (Comissão, Parlamento e Conselho), Costa marcou logo a agenda contra a escolha do candidato do PPE, Manfred Weber, para o primeiro e mais influente desses cargos, argumentando com a sua falta de experiência governativa. Além disso, o primeiro-ministro português soube posicionar-se no interior da alternativa a um novo consulado do PPE, incluindo socialistas, liberais, verdes, macronistas e até o próprio Syriza grego — e da qual poderiam sair, com maiores probabilidades de sucesso, dois nomes: o do conservador mas tendencialmente macronista Michel Barnier, beneficiando de um consenso quase generalizado pela forma como conduziu as negociações do “Brexit”, ou o da liberal Margrethe Vestager, que se destacou enquanto comissária da Concorrência pela sua ofensiva fiscal contra os gigantes tecnológicos americanos como a Apple.

Sabe-se que o factor mais próximo que explica a ampla vitória do PS nas europeias foi a forma como Costa soube gerir a chamada “crise dos professores”, empurrando o PSD e o CDS para um beco sem saída que lhes retirou credibilidade política. Além disso, a forma errática, crispada e até amadorística como os líderes da direita conduziram as respectivas campanhas impediu-os até de capitalizar a óbvia fragilidade do cabeça de lista do PS. No fundo, quem triunfou nas europeias, além do PS, foram aqueles mais sintonizados com camadas mais jovens, cosmopolitas e dinâmicas do eleitorado, como o Bloco ou o PAN (este, sem dúvida, uma tendência a seguir de perto). Já o PCP limitou-se a confirmar um inexorável declínio histórico, na linha dos seus antigos congéneres europeus.

No entanto, a vitória socialista ocorre quase ao mesmo tempo em que o partido é confrontado com vários dos seus calcanhares de Aquiles, como é o caso do caos nos transportes que se seguiu, previsivelmente, à tão festejada e “revolucionária” redução tarifária. Tomou-se uma medida a favor do transporte colectivo e dos passes mais baratos num contexto de ruptura dos meios materiais indispensáveis para esse efeito.

Este é um padrão das políticas inconsequentes e contraditórias que o Governo tem seguido em domínios particularmente sensíveis como a saúde, a educação, a habitação ou até no atraso dramático do pagamento de reformas, que motivou um alerta vigoroso da provedora de Justiça. São casos a mais de disfuncionalidades e insensibilidade social que o Governo tem tendência a justificar com o equilíbrio das finanças públicas — e que lhe garante um lugar influente nos corredores de Bruxelas.

Entretanto, a consumada habilidade de Costa e o desnorte da maioria da oposição não serão suficientes para disfarçar um futuro ambiente de anarquia governativa e administrativa. Um recente, caricato e absurdo exemplo foi o das operações stop do fisco — e outras iniciativas programadas em casamentos! —, que a mera descoordenação ou a “autogestão” no pior sentido não bastam, de todo, para explicar. De facto, as fracturas expostas e os calcanhares de Aquiles começam a multiplicar-se a um ritmo que põe em xeque não só a solidez vitoriosa do PS, mas também, a médio prazo, a imagem tão apreciada de Portugal como um dos novos faróis da esperança europeia.

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