E se o resto contra-atacar?

Do muito que se pode dizer sobre a paisagem, o mais interessante será, porventura, o ser o retrato mais eloquente de um povo e do seu tempo.

Lisboa é Portugal. Fora de Lisboa não há nada. O país está todo entre a Arcada e S. Bento!...” atirou Ega, no aceso diálogo que travava com Craft, procurando as raízes da perda de músculo e de carácter do povo português. Esse olhar de Eça de Queiroz, plasmado nessa biografia de costumes que são Os Maias, diluiu-se entretanto na geografia, alastrando e elevando-se à condição de polivalente expressão popular “Portugal é Lisboa, o resto é paisagem”. Eça dedicaria um olhar mais atento às virtudes dos valores naturais desse outro país que, para lá do Rossio, para lá do frenesim e aprumo das conveniências urbanas, encerrava aquele que, para si, era o verdadeiro país. Declara-se então, n’A Cidade e as Serras, arrebatadamente encantado pelo Belo encerrado no sortilégio das paisagens rurais.

Que resto é então este que, sobrando do Portugal urbano e capitalizado que real e unicamente interessa, é capaz de encantar e apaixonar? Do muito que se pode dizer sobre a paisagem, num vasto espectro, que vai desde o puro esoterismo ao mais brutal e desalmado pragmatismo utilitarista e/ou economicista (servindo assim poetas e máquinas registadoras numa rara comunhão), o mais interessante será, porventura, o ser o retrato mais eloquente de um povo e do seu tempo. Um retrato que faz sentido apenas se entendido como síntese de terra e gente, em que a nossa alma se entranha na terra e a molda, na mesma medida em que a terra nos marca a alma. Tire-se um ingrediente, e o outro perde coerência. É na paisagem que inscrevemos os nossos valores ou sua ausência, o respeito pelos limites ou total falta dele, a compreensão ou desconhecimento dos ciclos fundamentais que regem o chão comum sobre o qual nos assentamos os pés. É lá então que nos vemos espelhados, de forma nua e crua – visão de que, muitas vezes, não gostamos, mas que é sempre a nossa.

E o que vemos é, mais do que mero presente, passado e, principalmente, futuro. As nossas paisagens de hoje são então as paisagens do futuro. E, inevitavelmente, é nelas que vivemos. Em 1982, Blade Runner recorreu a artifícios ficcionais para nos convencer de uma realidade imaginada. Em 2017, Blade Runner 2049 recorreu a bem reais imagens das estufas de Ejido, no Sul de Espanha, para construir a ficção. Estas estufas podiam ser as que hoje asfixiam a Costa Vicentina e o Sudoeste Alentejano, ou que arrancam o Algarve e a sua paisagem mediterrânica pela raiz. Porque neste tempo de uma sociedade crescentemente perdida na maionese do perpétuo espectáculo imediatista, tudo é genérico, e dificilmente cabe nela algo que não se conforme com as promessas fátuas de um folheto turístico.

A Paisagem portuguesa equivale a uma busca existencial à escala de um povo, processo que importa saber descodificar, ler, compreender, para encontrarmos novos equilíbrios, e a paisagem não contra-ataque, com os efeitos devastadores que incêndios, inundações, temporais ou desabamentos nos vão cada vez mais habituando. Aqui, só o conhecimento nos pode ajudar. O que se cultiva no Ensino – por defeito profissional, acuso o encerramento do curso de Arquitectura Paisagista na Universidade de Évora –, mas também o que se inscreve na Cultura cantada, dita e olhada pelo povo que vive e trabalha as paisagens. Para que o conhecimento possa penetrar, deve haver vontade de o apreender, e essa aparenta escassear cada vez mais. Por isso mesmo, o resto que temos, sendo paisagem, é cada vez menos nosso, e é isto que nos compete inverter.

(Por dever moral e vontade expressa do autor, o presente texto obedece a desacordo ortográfico.)

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