Coração de pedra

O cérebro ia-me tentando convencer que sobrasse o que sobrasse da Notre-Dame, daqui a cem ou duzentos anos, poderia ser alvo de admiração de visitantes com uma intensidade idêntica à dos que a conheceram neste século, com as suas camadas de história de 800 anos.

Foto
Reuters/PHILIPPE WOJAZER

O dia não tinha sido dos melhores. Saíra cedo do Porto, para uma reportagem que me obrigou a conduzir mais de hora e meia debaixo de uma chuva chata. Quase a chegar ao destino, um dos alertas do carro disparou e o regresso, já com sol, foi dificultado por outros problemas: qualquer subida ínfima fazia o carro perder velocidade e era preciso estar sempre a ver se o aviso não passava de laranja para vermelho porque, nesse caso (tinham dito da assistência técnica), era preciso mesmo parar.

Regressei ao jornal ao final da tarde, com o corpo dorido do stress e a intenção de entrar e sair: devolver o carro, comer a maçã que ficara na secretária e ir para casa. Mas nessa altura as imagens começaram a passar ininterruptamente na televisão. As primeiras que vi ainda eram só de fumo, mas minutos depois já se via uma bola de fogo a irromper de dentro da Notre-Dame, em Paris. E eu deixei-me ficar ali, de olhos colados ao ecrã, incapaz de ir embora.

Quando escrevo, ainda é muito cedo para saber exactamente a dimensão dos estragos, mas as notícias do tanto que se salvou, incluindo a estrutura da própria catedral, são surpreendentes. Quando era tudo fogo (ou assim parecia), a comer o telhado, a fazer tombar o pináculo central, parecia impossível que o resultado final não fosse muito pior. Assistíamos à tragédia em directo e, talvez por isso, fui tomada pela certeza que a catedral estava perdida.

Fui para casa com uma tristeza imensa a tornar-me o corpo ainda mais pesado. Na viagem, sentia o cérebro, sem que eu o controlasse, a racionalizar o que estava a acontecer durante aquele instante. A pensar que muito do que hoje ainda nos deslumbra, entre o que a humanidade foi construindo, é pouco mais do que ruínas. O Coliseu de Roma; Angkor, sempre em luta com o avanço da selva, no Camboja; Machu Picchu, no Peru. A pensar que os templos egípcios que nos tiram o fôlego pela sua pura dimensão foram, em tempos, pintados, pelo que o que hoje nos encanta, também é diferente do original. As próprias igrejas e catedrais medievais costumavam ter as paredes e colunas interiores cobertas de pinturas, mas não é por hoje terem a pedra nua que nos sentimos menos esmagados por tantas delas.

O cérebro ia-me tentando convencer que sobrasse o que sobrasse da Notre-Dame, daqui a cem ou duzentos anos, poderia ser alvo de admiração de visitantes com uma intensidade idêntica à dos que a conheceram neste século, com as suas camadas de história de 800 anos. Dei por mim a pensar nas fotografias espalhadas pela Polónia, em muitas praças e edifícios devastados pelos bombardeamentos da II Guerra Mundial, mostrando-nos que aquilo que vemos agora como perfeitamente preservado, como se nunca tivesse sofrido uma beliscadela, era, há pouco mais de 70 anos, um monte de escombros. E pensei que, acontecesse o que acontecesse, em ruínas ou restaurada, a Notre-Dame ia continuar.

Não serviu de muito. Porque foi no nosso tempo que isto aconteceu. Foi no nosso tempo que deixamos que um monumento que sobreviveu ao impensável fosse consumido por um incêndio que, pelo que se sabe até agora, terá resultado de um acidente relacionado com as obras de restauro do edifício. Como assim? Como é que é possível, com tudo o que aprendemos até hoje, que não tenhamos sido capazes de proteger a Notre-Dame?

E também não serviu de muito porque já não poderei mostrar a catedral, tal como a conheci, ao meu irmão. Apesar de já ter passado os 60 anos, só há pouco tempo é que ele se meteu num avião pela primeira vez. Fomos a Roma, primeiro. Passeámos por Barcelona, depois. Paris era a seguinte na lista, mas a vida foi-se intrometendo e a viagem foi sendo adiada. Agora não há volta a dar. Seja o que for que a Notre-Dame será a seguir, não vai ser o mesmo. Já não lha posso mostrar. Podemos descobrir juntos algo de diferente, mas não o edifício inteiro, tão esbelto que nos comovia quando, no interior da sua longa nave, levantávamos o olhar. Bastava isso.

Cheguei a casa com a mesma tristeza e continuei a assistir ao avançar do fogo sem conseguir afastá-la. O cérebro desistiu. E acho que foi só quando ele desistiu que percebi que estar triste por aquela pedra que ardia era, paradigmaticamente, razão para não estar triste. Porque sentir o coração doer pelo que é apenas pedra é uma das razões que nos torna humanos. Não morreram pessoas, ninguém ficou desalojado. Foi só arte. Foi só beleza e história. Foi só o coração de pedra de uma cidade. E mesmo assim, milhões de pessoas em todo o mundo ficaram desoladas. Que isso aconteça é razão suficiente para continuarmos a acreditar na humanidade.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários