“Famílias, odeio-vos”

O que deveria ser óbvio e cristalino segundo princípios básicos da chamada ética republicana tornou-se nos últimos tempos, como tantos observadores e eu próprio vêm constatando, o principal centro de controvérsia política.

O meu primeiro neto nasceu por estes dias. Foi o início de um novo ciclo na minha vida, além de um motivo de festa para a família, aliás as famílias cujos laços se têm entrecruzado no meu mundo afectivo ao longo do tempo. Diria, por isso, que me sinto bafejado pela sorte, pelo destino ou pela bondade daqueles que, sem esquecer os amigos mais próximos, me permitiram ter uma ideia de família quase oposta à daquela que André Gide, um dos escritores que mais marcaram a minha formação, invectivava em Les Nourritures Terrestres: “Familles, Je Vous Hais”. Essas famílias que, com a sua hipocrisia e o conservadorismo enviesado dos costumes burgueses, tentam reprimir e castrar a liberdade instintiva dos jovens em busca da sua própria identidade.

Introduzi esta nota pessoal por uma razão: porque um momento particularmente luminoso da minha vida familiar coincidiu com uma das polémicas mais deprimentes da vida política portuguesa e em relação à qual apetece retomar a famosa proclamação de Gide: “Famílias, Odeio-vos”. De facto, aquilo que a vida familiar tem de mais belo e gratificante aparece transfigurado naquilo que ela pode ter de mais mesquinho e desprezível, uma rede de interesses e protecções para privilegiar, em detrimento do mérito dos demais, aqueles que nos são mais próximos por via do sangue.

O que deveria ser óbvio e cristalino segundo princípios básicos da chamada ética republicana – neste caso, a não utilização dos laços familiares para favorecer o acesso a cargos públicos e governativos – tornou-se nos últimos tempos, como tantos observadores e eu próprio vêm constatando, o principal centro de controvérsia política. Ora isso tem permitido, entre outras coisas, disfarçar ou rasurar o que deveriam ser as verdadeiras alternativas políticas apresentadas aos cidadãos nestes tempos pré-eleitorais.

O Presidente da República tomou a iniciativa inédita de propor um anteprojecto legislativo visando o impedimento de nomear familiares sem limite de grau para cargos no órgão que directamente tutela. Já o PS, sob uma chuva de críticas devido à vaga de familiares nomeados para preencher cargos governativos ou equiparados, propõe limitar essas nomeações até aos primos – um dos graus de parentesco que tem estado, aliás, mais exposto aos favorecimentos.

Entretanto, perante este fervilhar legislativo – e as discussões suscitadas pela iniciativa insólita do Presidente – os partidos da oposição, nomeadamente o PSD, adoptaram uma postura mais céptica sobre as vantagens de mudanças legislativas, valorizando os critérios éticos e aproveitando para fazer fogo contra a chamada familygate (que, de resto, segundo as últimas sondagens, explicaria a recente queda do PS em benefício dos seus rivais directos).

Marcelo tem sido criticado por alguns constitucionalistas por extravasar as suas funções presidenciais e também por comentadores que o acusam de ceder às sereias do populismo. De facto, se a sua iniciativa é politicamente controversa, Marcelo não tem escondido, aliás com razão, o receio de ver engrossar os movimentos populistas (que, como já aqui notei, têm sido recuperados pela oposição de centro-direita, à falta de representantes directos, ainda sem visibilidade credível).

Em todo o caso, a preocupação de Marcelo não é supérflua e tem pelo menos o mérito de chamar a atenção para um dos calcanhares de Aquiles do regime mais vulneráveis à retórica do populismo – contra as elites, a casta política e os favoritismos familiares (que têm atingido, como é sabido, os partidos de governo e não apenas o PS). O ódio às famílias tornou-se, por isso, o novo mote dessa retórica que capitaliza o velho/novo escândalo do familygate.  

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