Forças Armadas recusam enviar Bashir para ser julgado em Haia

Impasse no Sudão mantém-se, um dia depois da queda do Presidente. Manifestantes não querem militares a gerir transição política e prometem não abandonar as ruas.

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Manifestantes mantêm protestos em Cartum, capital do Sudão Reuters/STRINGER

Os líderes militares responsáveis pelo afastamento do líder do Sudão, Omar al-Bashir, recusam extraditar o agora ex-Presidente, que é acusado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio. Os manifestantes que foram a força motriz do movimento que pôs fim ao regime autocrático de Bashir no Sudão não abandonam as ruas e receiam que esteja em curso a imposição de uma junta militar.

Há mais de uma década que os juízes do TPI tentam trazer Bashir a Haia para responder por várias acusações referentes a atrocidades cometidas pelas milícias governamentais durante o conflito no Darfur, entre 2003 e 2008, em que morreram 300 mil pessoas. Ao longo dos anos, Bashir tornou-se no “fugitivo mais célebre” do TPI, como descreve a BBC. O TPI emitiu dois mandados de detenção, em 2009 e em 2010, mas nunca os viu ser cumpridos, apesar de Bashir ter feito cerca de 150 viagens ao estrangeiro desde então. A extrema relutância dos governos, mesmo de países signatários do Estatuto de Roma que estabelece o TPI, em deter um chefe de Estado em funções permitiu quase sempre que Bashir pudesse viajar sem problemas por África, Ásia e Rússia.

Esta sexta-feira, o “conselho militar” que assumiu o poder no Sudão disse que não irá extraditar o Presidente deposto, embora tenha deixado em cima da mesa a possibilidade de que um futuro governo civil o possa vir a fazer. Os militares também não excluíram a hipótese de Bashir ser julgado num tribunal nacional.

A recusa dos líderes militares em extraditar Bashir deverá prejudicar as suas hipóteses de ganhar a confiança dos manifestantes que os encaram como demasiado próximos do seu regime. “Algumas das pessoas ainda no poder podem estar envolvidas em crimes que lhe são atribuídos, incluindo tentativas de destruir dois grupos étnicos leais aos rebeldes” do Darfur, observa a correspondente da BBC em Haia, Anna Holligan.

Porém, continua a jornalista, “discussões de bastidores vão ter lugar com vários actores internacionais para obter apoio, e a extradição do fugitivo mais célebre deste tribunal poderá ser uma poderosa carta de negociação”.

O ex-comissário para os Direitos Humanos das Nações Unidas, Zeid Raad al-Hussein, disse esperar que as Forças Armadas “façam a coisa certa” e que entreguem Bashir ao TPI. “Se eles desejam um novo futuro para o Sudão, terão que fazer a ruptura com Bashir e entregá-lo à guarda do TPI”, afirmou, em declarações à revista Foreign Policy.

Desconfiança em Cartum

A primeira noite da era pós-Bashir foi de desobediência popular. Milhares de pessoas mantiveram-se nas ruas de Cartum, a capital, desafiando o recolher obrigatório imposto pelos militares que tomaram o poder – rejeitam o plano das Forças Armadas e querem escolher já os seus líderes. O grito de protesto inicial, “o regime tem de cair”, foi substituído por um novo slogan, sintomático de que a pressão popular não deverá esmorecer: “o regime ainda não caiu”, ouve-se agora. Durante o dia, centenas de milhares de pessoas voltaram a concentrar-se ao redor do edifício do Ministério da Defesa, que se tornou no ponto de reunião dos protestos.

Perante a continuidade dos protestos, o “conselho militar” estabelecido logo após a saída de cena de Bashir tentou acalmar a população, oferecendo garantias de que não pretende manter-se no poder. “Somos os protectores das exigências do povo. Não somos gananciosos pelo poder”, afirmou o general Omar Zain al-Abideen, apresentado como o chefe do comité político do conselho militar.

Os militares prometeram “não ditar nada ao povo” e deixaram garantias de diálogo. “Queremos criar uma atmosfera para termos um diálogo pacífico”, disse Abideen. Na véspera, os militares que encabeçaram o golpe contra Bashir anunciaram que o país iria entrar num período de transição política com duração máxima de dois anos, durante o qual seria governado por um “conselho militar”, decretaram a suspensão da Constituição e impuseram o estado de emergência por três meses.

Os manifestantes, que desde Dezembro organizam concentrações contra Bashir, recusam que a transição seja mediada pelos militares, que acusam de estar a tentar “reproduzir o regime” anterior. “O nosso esforço para nos livrarmos do regime irá continuar até que a herança de tirania seja liquidada e os seus líderes apresentados à justiça”, declarou a Associação de Profissionais Sudaneses, uma das organizações da sociedade civil que tem liderado os protestos.

O impasse entre o movimento de protesto e os militares abre um período de extrema imprevisibilidade no Sudão. Uma das principais dúvidas é a extensão da resposta que as forças de segurança vão dar às manifestações nos próximos dias. O general Abideen afirmou que “o [direito ao] protesto está garantido”, mas sublinhou que os militares irão actuar de forma “muito decisiva” face a bloqueios de estradas ou pontes.

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