O que há para lá de uma vila cartão-postal?

Próximo é uma peça cosida a partir das histórias de quem vive em diferentes lugares do concelho de Sintra. Está em cena até 14 de Abril para nos mostrar o que há, afinal, para lá da vila cartão-postal.

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— Sintra do frio, do nevoeiro, do cachecol preferido, da linha, dos prédios, das praias, do trabalho, do lixo, dos jovens estudantes, das nuvens e das árvores, de estarmos dentro da nuvem. Sintra dos pássaros. Sintra dos castelos e da serra. Sintra das queijadas e dos travesseiros, do verde por todo o lado, dos lordes e dos poemas, dos românticos e dos apaixonados, do bairro, da aldeia, das ruínas, do património natural”.

Uma corda de memórias pendurada. Sobre a vila e os seus arrabaldes, sobre os sintrenses — os nascidos e os criados —, sobre quem a escolheu para ser casa, seja na Tapada das Mercês, em São João das Lampas, na Assafora ou no centro histórico.

Uma lavadeira, uma mulher a fazer pão — “Deus te acrescente” —, um sapateiro, um ferreiro. Já pouco se verá destes ofícios num concelho, onde o centro histórico, com os seus palácios e castelo, fizeram de uma vila um cartão-postal.

Só que Sintra “é muito mais do que isso”. É também dormitório para quem trabalha na capital ou nos concelhos vizinhos, terra de muitas nacionalidades. Terra onde há ainda uma ruralidade presente, onde se conta como era trabalhar na agricultura, lavar a roupa, fazer manteiga sem frigorífico, viver sem saber ler e escrever. E é nesse mapa que Sintra se torna muito mais rica além do que vem nos guias turísticos.

Susana C. Gaspar quis recolher estas histórias para que não se percam na memória que um dia acaba por desaparecer. De repente, um trabalho que pretendia resgatar estas memórias, misturá-las com histórias actuais que esmiuçassem as fronteiras - físicas e metafóricas - que existem no território, tornou-se numa “obrigação de registo, de não deixar os avós e os bisavós partir sem nos deixar memórias”. Porque esta é uma história que pertence a todos.

A encenadora de Próximo não é estreante nisto de passar para o palco conversas de café, documentos ou entrevistas. Já o tinha feito em 2011 num espectáculo sobre refugiados, em que pegou em “notícias de jornal” e em testemunhos recolhidos na ilha italiana de Lampedusa para pôr em palco o que ainda não tivera grande atenção por parte das pessoas. Em 2014, montou Corpo Mercadoria sobre tráfico de seres humanos, com base em notícias, documentários, fotografias. “Por que é que o teatro não vai ter com as pessoas? Porque é que não vai o teatro procurar material teatral junto das pessoas?”. 

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Depressa percebeu que havia “muitas vidas” em Sintra, concelho onde vive há dez anos, que precisavam de ser contadas. E não bastaria ler jornais locais ou consultar documentos. Era preciso ir ouvir estas pessoas, numa altura em que, ao mesmo tempo a vila é cortejada por turistas, ainda há um longo caminho a percorrer em relação à discriminação racial e ao abrir de todas as fronteiras do concelho.

Juntaram-se, assim, duas vontades: a da Companhia de Teatro de Sintra, pertencente à associação Chão de Oliva, e a da encenadora, de se aproximarem à comunidade e de trazer também à plateia de um teatro. “Há uma Casa do Teatro de Sintra aberta à comunidade, mas a comunidade não vem.”, repara Susana C. Gaspar.

Desta vez, são as suas próprias histórias, vontades, frustrações que estão em palco. Quase tudo palavra por palavra.

"O café dos brancos"

- Olhe tem um minutinho?

- O meu tempo é muito contadinho.

"Foi um trabalho de escuta muito bonito”, diz a encenadora. Os quatro actores (Diana Narciso, Miguel Moisés, Patrícia Cairrão, Susana C. Gaspar) que estão em cena sentaram-se à conversa com moradores durante meses em diferentes zonas do concelho de Sintra. “Perdemos a conta à quantidade de pessoas com quem conversamos em cada lugar”. Nas ruas, nos cafés, nas mercearias, nas associações. E, de repente, Sintra já não era “aquela ideia bonita, de cartão-postal”.

A recolha começou em Outubro. Percorreram o bairro suburbano, o meio rural, o centro histórico. Ouviram histórias com muitos anos, de uma altura em que as meninas iam aos bailaricos e depois o pai ia buscá-las no tractor. “Disse-nos a professora C, que há 30 anos, Odrinhas tinha muito mais vida”. Mas a fábrica do leite Vigor fechou e Odrinhas estagnou no tempo. ​

Em São João das Lampas, por exemplo, não havia tantas pessoas nas ruas para conversar. “É totalmente diferente da Tapada [das Mercês]”, repara Susana. Mas, ao fim-de-semana, parecia-se com Lisboa. Havia mais movimento no café, na missa. “As pessoas falam com uma nostalgia imensa do passado e do antigamente quando toda a gente se conhecia e sabia quem ia nas ruas”. Agora não. Instalou-se uma classe média alta que já só vai passar lá o fim-de-semana na casa de férias. E há o alojamento local. De repente, a aldeia enche-se de surfistas.

Na Tapadas das Mercês “é muito estranho. É tipo dormitório”, conta a encenadora. Às tantas, de aldeia passou a uma “selva de betão”, e quem ali vive ainda depende muito do comboio. “Quando há greve, a gente não sai da Tapada”. Acabaram por encontrar muita vida nas ruas. Toda a gente se cumprimentava, mas a conversa acabava muitas vezes na insegurança associada à zona. “Neste momento é um bom momento porque estão os maus todos presos. Como se a violência fosse cíclica. Quando acabam as penas regressam os mafiosos”. 

Ali, também é lugar de acolhimento para muitos imigrantes que chegaram e acabaram a abrir negócios. Como o “senhor Z” que fugira do Paquistão por ser homossexual. Para Susana, sabe-se que há ainda muitos muros por derrubar quando se ouve que “ali é o café dos brancos” e que “a pretalhada fica toda lá para baixo”.

"Próximo"

Chamaram de Próximo a este espectáculo, porque, diz a encenadora, quiseram aproximar a periferia de Sintra ao centro e confrontar os sintrenses com as diferentes realidades de cada território. Confrontá-los com o passado e com o presente, fazê-los reflectir na forma como evoluiu o concelho. 

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Na última fase desta “escuta bonita”, percorreram o centro histórico de Sintra. “Ali, também há uma grande nostalgia porque se sente a descaracterização e a pressão do turismo”, conta Susana. Os comerciantes dizem que é bom para o comércio, mas parece que Sintra perdeu qualquer coisa. Em primeiro lugar residentes. “Já não tenho vizinhos, a não ser um alemão”, ouve-se, às tantas. Contaram-lhes que há menos de 300 pessoas a viver no centro histórico. As que vivem fazem-no entre gruas para a construção de mais um hotel, ao som dos cliques das máquinas fotográficas. “A confusão que é subir a rua da Piriquita”. 

Ou logo à saída da estação, como uma senhora lhes contou que lhe fazia muita confusão ver os turistas que, mal saem do cais, começam logo a fotografar as fachadas, mesmo com a roupa estendida e com as cuecas lá penduradas.

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E houve também quem lhes dissesse que a “vila está doente”, que o centro histórico não manteve a mesma paisagem. “Hoje a Unesco está muda”. A obra da antiga Casa da Gandarinha, que a transformará num hotel, era o assunto do momento na vila, depois desta construção no sopé da serra ter sido embargada

A ideia última, diz Susana, não foi reconstruir, nem reconstituir: foi mesmo “brincar” com as diferentes vozes, com os textos, com as histórias e costurá-las numa peça que está agora em cena. 

Próximo vai estar em exibição na Casa de Teatro de Sintra até 14 de Abril. De quinta-feira a sábado, a sessão tem início às 21h30 e aos domingos às 16h. O bilhete custa 7,50 euros, mas há descontos para grupos, para jovens e idosos.

Há quem diga que “Sintra já só se sente de manhã ou ao final do dia”. Fica uma Sintra de memórias, “quadro pintado todos os dias pelos olhos de quem ali vive”. Para que a tonalidade “sépia” com que o Instagram pinta Sintra não tolde o olhar de quem a visita ou nela vive. Nem a bruma que raramente se dissipa encubra uma vila que é muito mais que um cartão-postal.

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