A sobranceria e os passos em falso do PS

Costa é um dos dirigentes mais bem cotados no clube europeu de um centro-esquerda em crise de identidade, programa e liderança. Mas os seus passos em falso podem rapidamente trocar-lhe as voltas.

Quando a mais velha democracia parlamentar do mundo conspira compulsivamente contra si própria até ao ponto de se definir pela negação de todas as alternativas ao seu dispor – como tem acontecido com as sucessivas votações/rejeições no parlamento britânico a propósito das portas de saída para o “Brexit –, não nos deveríamos espantar sobre uma comum apetência suicidária que democracias menos antigas e sólidas vêm manifestando nestes tempos de desorientação em que vivemos. Ora, Portugal tornou-se um dos exemplos mais recentes dessa tendência, com a concentração obsessiva do debate político em torno das redes familiares em que o Governo socialista se deixou aprisionar, ameaçando mesmo tornar-se o tema central das próximas campanhas eleitorais.

Como seria totalmente previsível, um punhado de comentadores vocacionados para a polémica doméstica chamaram um figo a esta oportunidade servida numa bandeja pelo PS e o seu Governo. Mas o que surpreende ainda mais (ou talvez não) é a facilidade quase patética com que os socialistas expõem os seus calcanhares de Aquiles, fazendo mesmo gala dessa exposição e encontrando para ela os argumentos mais abstrusos. Um deles é o de que o rufar de tambores contra o grau inédito das conexões familiares no actual Governo se destina a desviar as atenções do que vem sendo apresentado como a medida «revolucionária» por excelência do PS: os passes sociais para os transportes.

O problema com o PS – e porventura com os partidos portugueses – é o de que o seu autismo o leva a ser incapaz de um esforço de reflexão crítica sobre si mesmo, atribuindo a campanhas maldosas ou «teorias de conspiração» toda e qualquer discordância sobre o seu comportamento político. Não que essas campanhas não existam, obviamente. Mas elas existem também na medida em que o PS, refém do «umbiguismo» ou do cinismo desse comportamento, as favorece e até inconscientemente as promove, como se vivesse à margem do escrutínio democrático. Por mais detestável que seja a demagogia das «cruzadas” a que a direita (e não só) recorre para comprometer as ambições maioritárias a que aspira o PS, isso tem sido possível por obra e graça da ligeireza, da inconsciência e da cegueira persistente – dir-se-ia por vezes incurável – dos responsáveis socialistas.

A sobranceria de que usa e abusa o PS – ou, mais concretamente, António Costa – reflectiu-se, por exemplo, nos critérios que levaram à escolha de Pedro Marques como cabeça de lista às eleições europeias. Como já aqui lembrei e alguns comentadores também sublinharam, o ex-ministro da propaganda, que se destacou em sucessivos anúncios megalómanos vazios de conteúdo, foi preferido a Maria Manuel Leitão Marques, uma personalidade conhecida pelo seu trabalho consequente de modernização e simplificação administrativa do Estado. Além disso, Costa parece imaginar Pedro Marques como futuro comissário europeu responsável pelos fundos estruturais – esse tesouro mágico de que Portugal tanto depende para investimentos fundamentais na renovação do país. Não se tratará, porém, de um gritante erro de casting, tendo em conta o passado propagandístico de Marques e também o flagrante conflito de interesses a que ficaria exposto se quisesse beneficiar excessivamente Portugal através da sua pasta europeia?

António Costa parece apostado em colher os frutos da experiência da “geringonça” como um dos dirigentes socialistas hoje mais bem cotados no clube europeu de um centro-esquerda em crise de identidade, programa e liderança. Mas os seus passos em falso podem rapidamente trocar-lhe as voltas quando chegar o momento da verdade.

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