New Dawn não é o novo amanhecer de Far Cry

A Ubisoft põe nas mãos dos jogadores uma enorme área com incontáveis objectivos e afazeres pelo caminho. Há muito para fazer, muito para ver, muito para evoluir. Mas será que há vontade?

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Constantemente perguntando ao jogador o que quer fazer a seguir, Far Cry New Dawn é uma obra que vive para saciar a curiosidade do intrépido explorador digital. Acumulam-se horas a conviver com personagens que vão dinamizando um mapa de dimensões generosas: cores garridas entrelaçadas por entre explosões, execuções pela lâmina cravada na axila, materiais procurados para construir e melhorar quem somos e o que fazemos na nova obra da Ubisoft.

Contam-se dezassete anos desde os acontecimentos que marcaram Far Cry 5, quando o alucinogénio bliss veiculou a loucura de Joseph Seed, o fanático líder de um culto. Agora, as antagonistas são duas irmãs gémeas, Mickey e Lou. O seu caminho é um rasto de aniquilação, decisões e execuções definidoras e inquestionáveis. Começamos a respirar o ar de New Dawn com a tarefa de reconstruir uma base chamada Prosperity. Objectivo que nos apresenta a outras personagens: Kim e Nick, que começaram este porto que quer ser de abrigo, mas também Carmina Rye, a sua filha e potencial lutadora ao nosso lado.

Neste mundo ficcionado, as gémeas não querem que Prosperity ganhe saúde, dispostas a tudo para que não sejam feitas grandes ondas por esta comunidade. Cedo no jogo declaram essa guerra, passando ao ataque e remetendo-nos para um missão em que temos de defender a base da sua implacável ofensiva. É uma declaração das suas intenções para que o jogador tenha a perfeita consciência do quão insignificante a vida humana é aos seus olhos. É também uma amostra dos inúmeros confrontos que teremos com os Highwaymen, inimigos rasteiros, lacaios que são treinados como veículos de guerra preparados para morrerem sem grande impacto emocional nos seus pares.

Como em Far Cry 5, o arco narrativo é apresentado ao jogador de uma maneira fraccionada. Uma das principais personagens da obra anterior está de regresso, levando-nos numa viagem quase paralela ao argumento principal. O seu filho é quem manda naquela parte do mapa devido à sua ausência, o que nos proporciona numa viagem de busca (um capricho do filho que quer provas da morte do seu pai), mas que é atada de uma forma algo atabalhoada no final de New Dawn. São horas para que o jogador mate saudades – e não só –, mas que na prática parecem indicar que a Ubisoft não tinha confiança total em Mickey e Lou para sustentarem a viga mestra do antagonismo.

Repetindo a fórmula das obras anteriores da série, New Dawn passa muito pela saída do ponto inicial para ir explorando todos os recantos do mapa. Temos a oportunidade para resgatar e recrutar specialists, que nos ajudarão e farão a base prosperar; há outposts para serem capturados e funcionarem como expansão à nossa rede de locais seguros; podemos ir investindo horas em actividades secundárias que aumentam a longevidade e regra geral nos vão recompensando com materiais. Em suma, é um jogo que coloca os fãs num círculo em que nos preparamos para ir mais longe e vamos mais longe para fazermos melhor.

O alinhamento de personagens que vamos recrutando para a nossa causa vão desde Carmina a The Judge, passando por Hurk, uma ajuda alucinada munida de um lança-mísseis e de um dedo pronto para o usar. Mas há também Horatio e Timber, por exemplo. Horatio é um javali que investe sobre os inimigos e Timber é um cão que o jogador salva numa missão que decorre num canil e que lhe parte o coração – os cães aprisionados estavam à espera de um final desolador.

A produtora gaulesa tenta que o núcleo da sua jogabilidade não seja um truque de magia em apenas um acto. Por exemplo, há missões que funcionam como uma caça ao tesouro onde temos que seguir as pistas deixadas nas proximidades. Isto serve para uma apresentação dos confins do mapa de jogo, mas também – e como quase tudo em New Dawn – para as recompensas. 

New Dawn coloca em montra a evolução da personagem e de Prosperity. O pessoal que vamos resgatando é indispensável para a progressão da base. Podem melhorar o seu jardim com plantas medicinais, o que na prática permite que os kits médicos passem a regenerar a vossa saúde por mais tempo. Podem também melhorar a garagem e assim passar a criar veículos de um rank mais avançado. Mas podem também dar prioridade ao Workbench, local onde criam as armas que posteriormente usarão na imposição da vossa força – ao ser melhorado, o Workbench passa a permitir que criem armas de um rank superior. 

Este ciclo tem o seu aliciamento, pois detém uma chama muito própria na hora de nos fazer sentir realizados. Isto não quer dizer, contudo, que não haja também uma nuvem de familiaridade, especialmente se tiverem esgotado tudo o que havia para fazer em Far Cry 5

Quando cheguei ao final da obra, estava a jogar com uma personagem completamente diferente da inicial. De salientar ainda que já na recta final do jogo é desbloqueada uma segunda categoria de perks que mudam radicalmente a essência das abordagens que fazem às cenas de acção. Pertença do género das magias, estas habilidades consomem algo designado por Eden’s Gift e podem, por exemplo, fazer com o protagonista fique temporariamente invisível.

É uma injecção de diversidade nos processos basilares da jogabilidade. As evoluções das habilidades, das ferramentas para construir armas e, obviamente, das próprias armas, são condensadas na hora de pressionar o gatilho. Desde caçadeiras a metralhadoras ou snipers, passando por excentricidades que lançam serras ou projécteis como granadas e cocktails molotov, é o jogador que recolhe os frutos da sua preparação. 

Infelizmente, aqueles que lutam ao vosso lado nem sempre tomam as melhores decisões. A inteligência artificial dos companheiros e também dos inimigos continua a denotar alguns comportamentos ocasionalmente aquém. A forma como atacam ou defendem ilustram algumas escolhas de posicionamento questionáveis e, por exemplo, o meu aliado de ocasião, o Judge, resolveu colocar-se à frente da minha arma, o que fez a seta encontrar destino no seu corpo e, consequentemente, levou os inimigos a repararem na minha presença. Nas estradas, por exemplo, há este défice de inteligência nos inimigos, que pode facilmente ser testemunhado na forma como defendem os camiões com etanol ou com os prisioneiros que podem ser libertados.

Do ponto de vista técnico, Far Cry New Dawn volta a ser impressionante. Jogado numa PlayStation 4 Pro, percorrer este mapa que é uma versão mais concentrada do que a apresentada no seu antecessor, é percorrer um chorrilho de locais memoráveis. Desde os cursos de água às zonas montanhosas, passando por uma longa viagem rio acima que faz lembrar um percurso de Hellblade, a Ubisoft pinta um longo mapa com a liberdade de quem constrói um cenário pós-apocalíptico. A modelagem é menos conseguida, seja das personagens, dos veículos ou de alguns animais, mas não é algo que retire valor à conquista técnica como um todo.

Toda esta escala é pesada e intrincada no que à programação diz respeito, o que levou a ocasionais bugs, especialmente no comportamento da física. Por exemplo, um dos Highwaymen ficou preso na porta do camião, que começou a flutuar como se fosse um balão. Sanado o ataque de riso, sentem-se como apontamentos que, mesmo não partindo irreparavelmente a obra, acabam por se acumular e quebrar momentaneamente a imersão e a confiança que se tem no videojogo.

A sonoplastia, mesmo com temas musicais adicionais que podem ser encontrados e recolhidos no cenário, fica aquém na diversidade. No departamento da vocalização, o trabalho feito é sólido, havendo espaço para alguns destaques, como as tiradas de Hurk e o tom usado nos monólogos filosóficos da tal personagem de Far Cry 5 que está de regresso. É sobretudo uma linha de trabalho que serve para fazer a história avançar, não a grande aposta da Ubisoft. Tudo isto é ocasionalmente espicaçado pelo som fracturante do disparo de uma arma que coloca o jogador em sentido antes de colocar o inimigo na horizontal.

Far Cry New Dawn não é um mau jogo. Muitos dos processos são semelhantes ao jogo anterior, o que faz com que corra o risco de ser demasiado familiar. Muito do que faz, faz a pensar numa escala enorme que simula muito do que pode ser descrito como uma vida alternativa digital para quem o joga.

No final da história, sente-se a desconexão e a inconsequência da trama. New Dawn não é um videojogo sobre cruzar a meta, mas sobre o que se vê quando, dessa meta, se olha para o percurso feito até lá chegar.

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