Dick Dale (1937-2019). O rei do surf rock cuja guitarra era um tigre, um vulcão, uma onda

Inventou o surf rock, caldeirão do qual saiu Misirlou, canção imortalizada em Pulp Fiction. Um dos melhores guitarristas de todos os tempos morreu este sábado, aos 81 anos.

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Dick Dale fotografado em 2010 num concerto na Casa da Música no Porto PAULO PIMENTA / PUBLICO
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O guitarrista Dick Dale, pioneiro do surf rock, morreu este sábado à noite, confirmou ao The Guardian Sam Bolle, baixista da banda do norte-americano. Tinha 81 anos. A causa da morte não foi revelada, mas o músico teve vários problemas de saúde nos últimos anos.

Com o single de 1961 Let’s go trippin’, Dick Dale inventou uma forma de música instrumental, que alimentava e se alimentava da utopia surf e boémia daquela década. No ano seguinte, lançou Misirlou, a adaptação surf de uma canção tradicional do Mediterrâneo Oriental pela qual será, sobretudo, lembrado. A Misirlou de Dale foi escolhida para a cena de abertura de Pulp Fiction (remata a loucura criminosa anunciada por Amanda Plummer, que ameaça executar “every motherfucking last one of you")​, tornando-se símbolo do filme de Quentin Tarantino de 1994, e seria enxertada em Pump it (2005), do grupo de hip-hop e pop Black Eyed Peas.

Nascido Richard Monsour em 1937, em Boston, Dick Dale inventou o surf rock operando um improvável encontro de escalas musicais do Médio Oriente e do Leste da Europa com a electricidade e a reverberação oferecidas pelos amplificadores da época. Filho de pai libanês e mãe polaca, passou a infância a ouvir canções tradicionais daquelas culturas. A essa influência inicial juntou a fúria percussiva do baterista Gene Krupa, que transpunha para as seis cordas da guitarra eléctrica, e o swing das big bands.

O seu estilo inovador e ultra-rápido influenciou guitarristas como Jimi Hendrix e Eddie Van Halen. Autodidacta, Dale levou a guitarra a novos limites de ruído e libertação eléctrica. Nessa aventura, ajudou Leo Fender, o fundador da Fender, a desenvolver a guitarra Stratocaster e outros equipamentos, como o primeiro amplificador de 100 watts. Foi também pioneiro no uso de efeitos de reverberação, através dos quais agigantava o som da guitarra.

“Eu fui o piloto de testes de tudo o que saiu da cabeça de Leo Fender”, disse ao Miami New Times em 2011. “Ele costumava dizer: ‘Quando consegue aguentar a força do castigo de Dick Dale, [o produto] está preparado para o consumo humano’. Dei cabo de 50 amplificadores. E é por isso que me chamam o pai do heavy metal.” 

O poder do mar na guitarra

Nos anos 1950, já na Califórnia, para onde se mudou, começou a actuar em concursos de talentos e afirmou-se como artista rockabilly rhythm & blues. O primeiro singleOoh-Whee Marie, editado em 1958 pela Deltone (fundada pelo pai para divulgar a música do filho), conta com a voz de Dale e parece-se com mil e uma outras canções da época. Mas nos anos seguintes, enquanto pensava numa forma de pôr em música as sensações da vida de surfista, Dale desenvolveria um estilo instrumental cada vez mais idiossincrático, atraindo mais e mais pessoas para os seus concertos. Em 1961, nada ficaria como dantes: a Deltone edita o single Let's go trippin', considerado o primeiro instrumental surf rock da história. Dois anos depois, os Beach Boys fariam uma versão da canção, no álbum Surfin’ USA.

Let's go trippin' foi o primeiro de uma série de êxitos de Dick Dale na Califórnia, com alguma repercussão nos tops de venda nacionais, como Jungle feverMisirlou Surf beat. No primeiro álbum, de 1962, a estética surf apresentava-se plenamente consolidada. Surfer’s Choice, o primeiro álbum do género, foi um fenómeno de vendas no sul da Califórnia, o que valeu a Dale as atenções da Capitol Records, distribuição nacional e aparições em filmes e programas de televisão como o The Ed Sullivan Show.

“Sentia uma quantidade tremenda de poder enquanto surfava e esse sentimento de poder foi simplesmente transferido para a minha guitarra quando tocava música surf. O estilo de música que desenvolvi, para mim na altura, era o sentimento que tinha quando estava lá fora nas ondas. Era um bom sentimento, de liberdade, quando ficava no tubo, com a espuma a desfazer-se por cima da minha cabeça. Estava a tentar projectar para as pessoas o poder do oceano. Não o podia fazer cantando, por isso, a música assumiu uma forma instrumental”, diria, citado no livro Rockin’ in Time, de David P. Szatmary.

Um lutador em palco

A popularidade da surf music não duraria muitos anos – estaria para chegar a British Invasion e, com ela, o domínio de bandas como os Beatles e os Rolling Stones. Passada a moda, a Capitol despediria Dale em 1965. Continuou a tocar, interrompendo a carreira apenas durante alguns anos devido a um cancro rectal, diagnosticado em 1968 – doença que voltaria a vencer em 2008. E não parou de actuar.

“Tenho que juntar três mil dólares todos os meses para pagar os medicamentos de que preciso para me manter vivo – isso para além do seguro que pago”, disse em 2015 ao Pittsburgh City Paper. Numa entrevista à Billboard, nesse ano, disse que preferiria ficar em casa com a sua mulher e agente, Lana, se não tivesse de pagar as despesas dos tratamentos pós-cancro, da diabetes e outros. “Mas também tenho que perceber que me mantive vivo por alguma razão. As pessoas não estão apenas a vir a um concerto, estão a vir a um estilo de música onde podemos partilhar as nossas vidas e como gozamos com isto [os problemas de saúde].”

Em 2015, foi considerado pelos seus pares um dos cem melhores guitarristas de todos os tempos, numa lista publicada na Rolling Stone. “Nunca tive aulas de música, nunca aprendi teoria musical”, explicou Dick Dale, ao Washington Post, em 1993. “Quando toco, é assim: ‘Isto soa como um tigre; isto soa como um vulcão; isto soa como a água a rebentar em cima da minha cabeça quando estou a surfar.”

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