Maria de Belém diz que proposta da Lei de Bases da Saúde do Governo tem uma “inconstitucionalidade”

Proposta "abre a porta a que as pessoas que não se portam bem, de acordo com uma avaliação que não sei por quem é feita, não tenham acesso aos cuidados de saúde", declarou nesta quarta-feira no Parlamento.

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Miguel Manso

A socialista Maria de Belém avisou nesta quarta-feira que há uma inconstitucionalidade na proposta da Lei de Bases da Saúde do Governo, ao responsabilizar as pessoas pela sua saúde, o que, no seu entender, pode vedar o acesso aos cuidados a alguns utentes.

O alerta foi dado pela antiga ministra da Saúde, que presidiu a Comissão de Revisão da Lei de Bases da Saúde, na Comissão da Saúde, onde nesta quarta-feira foi ouvida a pedido do CDS-PP, para “explicar detalhadamente” o projecto que apresentou ao Governo.

Questionada pelos deputados sobre a proposta de Lei de Bases do Governo, Maria de Belém Roseira disse não estar preocupada, porque ela foi entregue na Assembleia da República, mas fez questão de alertar para uma medida proposta no documento. “A lei será aquela que os deputados decidirem votar, mas eu tinha de dar este sinal e fazer esta chamada de atenção, porque nem todos os deputados são juristas e ia-lhes escapar alguns pormenores de leitura”, disse ao PÚBLICO.

Na comissão, horas antes, a antiga governante já clarificara: “Realmente eu não estou preocupada, mas gostava de vos chamar a atenção para uma coisa que, para mim, é absolutamente estruturante, quando nessa proposta se consagra que todas as pessoas têm o dever de serem responsáveis pela sua própria saúde e pela melhoria da saúde da comunidade, tendo o dever de as defender e promover.”

Em causa, está a alínea a) do ponto 3 dos “Direitos e deveres das pessoas”, que estabelece: “Todas as pessoas têm o dever de ser responsáveis pela sua própria saúde e pela melhoria da saúde da comunidade, tendo o dever de as defender e promover.” Para Maria de Belém, esta medida que consta da proposta do Governo “é inconstitucional”, porque o artigo 64 número 1 da Constituição Portuguesa diz que “todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover”. “Eu não posso ser responsável pela sua saúde, nem posso intrometer-me na sua vida. Há um direito fundamental que é o do livre desenvolvimento da personalidade”, esclareceu ao PÚBLICO.

"Não posso aceitar isto”

Na comissão, a antiga ministra da Saúde, citada pela Lusa, argumentou ainda: “Isto abre a porta a que as pessoas que não se portam bem, de acordo com uma avaliação que não sei por quem é feita, não tenham acesso aos cuidados de saúde”, vincou. E sublinhou ainda que esta questão “não é um fantasma”, é uma discussão que tem sido levada a cabo por vários países, designadamente da União Europeia.

“Isto não são coisas irrelevantes (...) não posso aceitar isto”, disse a jurista, afirmando que esta medida é “uma alteração estruturante” daquilo que são os direitos fundamentais consagrados na Constituição da República Portuguesa. “E, portanto, quando me dizem que isto protege as pessoas, compreendem a minha preocupação”, comentou.

Em Junho do ano passado, Maria de Belém apresentou aos jornalistas a “pré-proposta” para a nova Lei de Bases.

A proposta chegou a ser apreciada em conselho de secretários de Estado, mas nunca chegou a ser apreciada em Conselho de Ministros.

Entretanto, em Outubro, a remodelação governamental atingiu a saúde e Adalberto Campos Fernandes foi substituído por Marta Temido, que, desde logo, indicou que a nova equipa ministerial pretendia “aperfeiçoar” o documento e incorporar a sua visão na proposta final do Governo. Na manhã desta quarta-feira, Maria de Belém também se referiu a estas mudanças, argumentando que as personalidades que integraram a Comissão de Lei de Bases da Saúde “não podem ser desprimoradas”, porque deram “o seu melhor” e “mais do que seria exigível”.

Trabalhar de graça

“A mim não me importa nada, eu estive na vida política muitos anos e faltaram-me muitas vezes ao respeito ou à consideração, mas às pessoas que eu desafiei para trabalharem de graça” não, frisou a antiga ministra da Saúde.

A Comissão foi composta pelos professores André Dias Pereira, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Cláudia Monge, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Helena Pereira de Melo, da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, e por Maria Isabel Saraiva, vice-presidente da associação Respira e por Sofia Crisóstomo, coordenadora do projecto “Mais participação, melhor saúde”.

Maria de Belém Roseira salientou que todos trabalharam de graça. “Isto quer dizer que pagámos para trabalhar, com muito gosto, com enorme gosto, mas estes senhores e senhoras não podem ser desprimorados porque deram verdadeiramente o seu melhor e mais do que seria exigível”, disse. "Cumprimos e antecipámos os prazos deste documento e as pessoas multiplicaram-se para poder produzir aquilo que produzimos, que é bom em qualquer parte do mundo”, afirmou, rematando: “Sabemos que não temos poder de iniciativa legislativa, mas fizemos o que tínhamos de fazer, entregámos ao Governo.”

A antiga governante sublinhou ainda que o então ministro da Saúde Adalberto Campos Fernandes, responsável pela sua nomeação para presidir a comissão, “nunca interferiu” na escolha das pessoas, no andamento dos trabalhos e entregou o documento directamente no Conselho de Ministros.

Depois de ouvir a intervenção de Maria de Belém, o deputado do PSD Ricardo Baptista Leite afirmou que “todas as faltas de respeito que acabaram por acontecer, pela nova equipa ministerial, são inaceitáveis”. “Infelizmente demonstram a forma de estar da actual equipa que gere a saúde no Governo”, disse o social-democrata.

Declarações que foram refutadas pela deputada socialista Maria Antónia Almeida Santos. “Nós podemos ter divergências, mas não posso deixar passar em claro a afirmação do senhor deputado Ricardo Baptista Leite em que referiu que o Governo terá cometido faltas de respeito em relação à doutora Maria de Belém e ao grupo de trabalho”, disse, vincando que “uma coisa são discordâncias outra coisa são faltas de respeito”. “Nós estamos habituados às discordâncias, as faltas de respeito não as admitimos sequer”, sustentou, agradecendo o trabalho da comissão.

Moisés Ferreira, do Bloco de Esquerda, desvalorizou esta questão afirmando que está a decorrer “um debate importante em especialidade sobre lei de bases e esse é o debate que realmente interessa”. “Tentar substituir isto por algumas questiúnculas de falta de respeito interessa muito pouco para a discussão e não interessa nada para os cidadãos nem para os utentes”, disse o deputado bloquista.

No final da audição, Maria de Belém afirmou que “ninguém na comissão está despeitado do aproveitamento ou desaproveitamento que eventualmente se pense que poderá ter sido feito”. “Eu estou muito confiante na Assembleia da República”, mas “o que eu também não gosto é de ver interpretações do nosso texto com leituras que a letra da lei não suporta, isto é que eu não gosto”.

A meio de Dezembro, o Governo aprovou em Conselho de Ministros a proposta de Lei de Bases, uma versão diferente daquela que o grupo coordenado por Maria de Belém apresentou.

O Parlamento constituiu um grupo de trabalho que vai tentar recolher contributos para uma nova Lei de Bases da Saúde que substitua a de 1990, estando em cima da mesa cinco propostas: a do Governo, a do Bloco de Esquerda, a do PCP, a do PSD e a do CDS, todas em análise em especialidade parlamentar.

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