Lei de Bases da Saúde de Maria de Belém perdeu parte polémica

Ex-ministra retirou parte relativa à concessão a privados da gestão de unidades do SNS da versão final da proposta da comissão que liderou. Bloco organiza conferência para mostrar consenso de personalidades do sector à volta da proposta de lei de João Semedo e António Arnaut.

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asm ADRIANO MIRANDA

O Governo deverá levar a Conselho de Ministros em breve, e como sua, a proposta de Lei de Bases da Saúde que pediu a uma comissão presidida por Maria de Belém para elaborar. A aprovação do documento chegou a ser anunciada pelo socialista António Sales para a última reunião do Conselho de Ministros (dia 20), o que não aconteceu. O Bloco de Esquerda, que já tem uma proposta no Parlamento, quer fechar o tema ainda esta legislatura, mas não sabe o que esperar do PS e não está satisfeito com a versão de Maria de Belém. A saúde é um tema que pode animar o último ano da “geringonça”.

Ao que o PÚBLICO apurou, o documento que a ex-ministra da Saúde apresentou em Junho, e que esteve em consulta pública durante trinta dias até 19 de Julho, terá sido entretanto alvo de alterações. Mas só depois de ser posto à consideração do partido que sustenta o Governo e do Ministério das Finanças é que deverá ser revelado publicamente.

Há uma parte mais polémica da pré-proposta do grupo liderado por Maria de Belém que foi retirada da versão final, na sequência de críticas efectuadas durante a discussão pública. Na primeira versão afirmava-se que a Lei de Bases da Saúde pode prever que a gestão dos estabelecimentos e serviços do SNS seja objecto de “concessão com entidades do sector de economia social e com entidades privadas, bem como de convenção com grupos de médicos ou outros profissionais de saúde”.

Na versão final esta formulação foi alterada, adiantou ao PÚBLICO Maria de Belém, alegando que se tratou de “um aperfeiçoamento na sequência da discussão pública”, uma mudança que fazia sentido porque uma lei de bases não tem que se referir a questões contratuais. Mas não especificou como ficou a formulação final. Notando que a Constituição fala na articulação dos três sectores (público, privado e social), a ex-ministra da Saúde lembra que o BE, na sua proposta, defende que "se deve proibir a intervenção dos privados”, o que “não é possível”. 

Em Junho, e percebendo que o texto de Belém não punha de parte as Parcerias Público-Privadas  (PPP) na saúde e não acabava com as taxas moderadoras, o Bloco considerou-o insuficiente. No Parlamento, os bloquistas também aceitaram que a sua proposta baixasse à comissão sem votação, evitando aos socialistas o embaraço de votarem contra uma Lei de Bases – a do BE – feita por um histórico socialista, António Arnaut, que é considerado o “pai” do Serviço Nacional de Saúde (SNS). 

A incógnita que permanece é saber o que o PS e o Governo farão relativamente à proposta do Bloco (a comissão parlamentar deve retomar os trabalhos em breve e dar início a audições nesta matéria), agora que o PSD apresentou um documento estratégico o qual, na realidade, tem alguns pontos de contacto com as ideias de Maria de Belém, apesar de ser muito mais aberto à iniciativa privada. Estará Rui Rio disposto a dar a mão ao Governo? Ou os socialistas optarão por adaptar a lei de Belém, integrando alguns contributos do Bloco?

BE junta notáveis

É neste contexto que os bloquistas organizam neste domingo em Lisboa a conferência Salvar o SNS: Uma Nova Lei de Bases da Saúde, na qual participarão algumas personalidades influentes do sector como o ex-bastonário da Ordem dos Farmacêuticos Aranda da Silva e o ex-consultor do actual ministro da Saúde Constantino Sakellarides, todos independentes, e ainda especialistas conotados com outras forças políticas, como Eugénio Rosa (PCP). Catarina Martins encerra a conferência.

Este debate, sublinha o deputado do BE Moisés Ferreira, não podia ser mais actual. “O SNS está hoje sob um ataque permanente reforçado com a recente proposta da reforma apresentada pelo PSD” e que faz “um retrato muito pouco honesto" do serviço público. O documento do PSD, que integra um diagnóstico muito negativo da actual situação do SNS e propõe uma "reforma estrutural da saúde" fundada numa "cooperação inteligente" entre os sectores público, privado e social,  "vem claramente a jogo dizer o que quer: a privatização da saúde", diz. "Não pode haver, agora, meios-termos nem tibiezas, é necessária uma lei que feche a porta a esta possibilidade de entrega do SNS a privados”, reclama.

Defendendo que a pré-proposta de Maria de Belém não responde aos problemas do SNS, uma vez que "é um pouco mais do mesmo naquilo que são assuntos estruturantes", Moisés Ferreira especifica que esta mantém a "possibilidade de concessão" de unidades do SNS ao privado e social (o deputado não conhece ainda a versão final) e continua a admitir taxas moderadoras, apesar de um “artifício”, que é o de prever que se institua um tecto máximo anual para as despesas dos utentes com estes pagamentos. O BE defende a eliminação das taxas moderadoras, admitindo-as somente em consultas ou exames que não tenham sido solicitados por profissionais de saúde. 

A proposta da comissão presidida por Maria de Belém fala em articulação entre público e privado, não em complementaridade, e, assim, "é uma incógnita". "Parece-nos que é para manter tudo igual", lamenta Moisés Ferreira, para quem é fundamental que o PS e o BE se "entendam para fazer uma lei de bases à esquerda e que feche a porta ao negócio e à privatização da saúde". "Não temos dúvidas de que a nossa proposta é a que os socialistas querem", diz ainda, reafirmando que proposta do grupo liderado por Maria de Belém é "claramente insuficiente".

"A preocupação da comissão foi a de apresentar uma proposta que respeite a Constituição e as obrigações que o Estado já assumiu", retorque Maria de Belém que, a propósito das PPP na saúde, lembra que "o Estado tem que honrar os seus contratos, sob pena de ter de pagar enormes indemnizações" e recorda que as parcerias com privados "são uma opção política de cada Governo". Se esta possibilidade "não está vedada na Constituição, não poderia uma comissão que propõe uma lei de bases impedi-la", enfatiza.

Quanto ao recente manifesto do PSD, a ex-ministra da Saúde sublinha que são grandes as diferenças em relação à proposta de lei de bases que apresentou. “O PSD considera irrelevante quem presta o serviço. A nossa concepção é a de que o SNS é a espinha dorsal, não é a de que tanto faz que sejam uns ou outros a prestar o serviço [como alega o PSD]. Agora, em situações em que o Estado não consegue dar resposta, pode contratualizar com privados ou protocolar com o sector social”, explicita.

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