A resposta de Macron aos actos anti-semitas em França

Macron anunciou a intenção estranha de introduzir na lei francesa a noção de que o anti-sionismo é uma expressão do anti-semitismo. Trata-se de uma resposta particularmente preocupante e contraproducente de que não precisamos.

Ultimamente, o meu pensamento tem estado bastante focado em França e na acumulação de incidentes chocantes, utilizando símbolos nazis, de explícito ódio aos judeus.

O pior e mais visível dos incidentes foi de certeza o da profanação de cemitérios judaicos, como o de Quatzenheim. (Entretanto mais um cemitério já foi profanado.)

Antes de mais, pensemos no que significa este acto exemplar de vandalismo que é o símbolo da suástica em túmulos judaicos. Os vândalos estão a proclamar a sua assunção e elogio do genocídio nazi, a anunciar que a nossa morte é bem-vinda. Isso não é apenas vandalismo anti-semita ocasional; trata-se de um acto profundamente simbólico para essas mentes dementes e, por isso, típico da barbárie anti-semita.

Se calhar alguns reagiram às notícias destes incidentes pensando no anacronismo ou na marginalidade deste tipo de acto. Se calhar pressupunham que o flagelo do anti-semitismo teria sido varrido de um país moderno e europeísta como a França. Além do mais, pergunta-se, após o extermínio há 70 e tal anos, que importância têm os judeus na sociedade europeia actual para serem identificados de novo como alvo do ódio. (Eu também teria gostado de pensar que a ameaça do anti-semitismo se tivesse atenuado e que podia viver sem medo disso.) Mas não. Esqueceram-se que esta patologia, como as doenças que foram controladas pelas vacinas, corre o risco de regressar sempre que têm uma oportunidade, sobretudo quando se enfraquece o esforço de vacinação. Aliás, é isso que se tem vindo a verificar; o racismo patológico tem, desde há vários anos, gozado da sua melhor oportunidade na última geração, ressurgindo como reacção à vaga de imigração causada pela instabilidade do mundo actual. Sim, o anti-semitismo francês e europeu foi varrido, mas para baixo do tapete, e o racismo anti-imigrante permitiu que as ratazanas que se movem entre nós saíssem à noite para disseminar a sua praga.

Felizmente, perante este contexto, realizaram-se de imediato manifestações contra o anti-semitismo que reuniram milhares de franceses. Ouviram-se condenações e palavras de solidariedade e o Presidente francês desempenhou o papel esperado do chefe de um Estado democrático, condenando os actos racistas e anunciando a sua intenção de tomar medidas para combater o anti-semitismo. Mas qual será uma resposta adequada da República? Eis a questão fundamental.

A promessa respeitante à repressão dos criminosos, vedando o seu acesso à Internet, etc., é apropriada – esperemos que os agentes do Estado actuem efectivamente nesse sentido. No entanto, Macron anunciou simultaneamente a intenção estranha de introduzir na lei francesa a noção de que o anti-sionismo é uma expressão do anti-semitismo! Trata-se de uma resposta particularmente preocupante e contraproducente de que não precisamos.

Para resumir, é inteiramente razoável ser crítico da ideologia que promoveu a fundação de um Estado judaico. Na minha interpretação, essa crítica não é necessariamente equivalente ao anti-semitismo. Por exemplo, eu, judeu de raiz e assumido nessa identidade étnica, sou bastante crítico da história do movimento sionista e da forma que liderou a fundação do Estado de Israel e dirigiu o seu desenvolvimento. Sou sobretudo um critico da ocupação dos territórios designados palestinianos pela comunidade internacional. Contudo, podem acreditar, estou muito longe de ser contra Eu próprio, contra a minha família, contra a comunidade em que fui criado e educado. Também jamais actuaria de forma a minar a legitimidade da existência desse Estado no contexto do direito internacional. No entanto, embora nunca tenha configurado esse pensamento, as minhas posições políticas poderiam ser rotuladas – e têm sido rotuladas – por outros como sendo “anti-sionistas”.

Vai a República francesa restringir o meu direito como judeu a criticar as políticas e práticas desse Estado que pretende actuar em meu nome? Uso o meu exemplo como judeu apenas para insistir na legitimidade da crítica da ideologia e do Estado em causa, mas também não-judeus têm todo o direito de pensar racionalmente sobre os assuntos e a chegar a conclusões que são “anti-sionistas”. Quando o fazem, não são necessariamente anti-semitas. Seriam anti-semitas quando, e se, a sua crítica for essencialista, ou seja, se atribuem determinados actos criticáveis do Estado de Israel a uma condição inerente do povo judeu, ou a características raciais dos judeus enquanto tal e se, com base nisso, procuram discriminar ou atacar judeus porque são judeus. Fazer uma associação abusiva entre a crítica do sionismo enquanto ideologia de um movimento e Estado e o anti-semitismo não só é intelectualmente redutor e politicamente repressivo como descaracteriza o que é o anti-semitismo. Ainda mais, é uma jogada na repressão intensificada da luta pelos direitos legítimos do povo palestiniano que sofre as consequências de um Israel cada vez mais avançado na expropriação do que permanece do seu território.

Reconheço que algum anti-semitismo se esconde atrás do anti-sionismo contemporâneo. (O incidente, em que um protestante dos gilets jaunes foi filmado a gritar “sionista”, como epíteto ao filósofo judeu Alain Finkelkraut, foi exemplo disso.) Mas a intenção de Macron, o liberal europeísta, é inadequada, e por isso não faz sentido. Parece ser pouco mais do que uma cedência esquisita à pressão de Netanyahu, que, entretanto, nos revelou o alcance do seu cinismo político, insultando-nos, ao convidar os líderes do eixo iliberal e anti-semita da Europa para realizar a sua cimeira em Jerusalém! (Este mesmo Netanyahu também neste momento está a movimentar-se politicamente para fazer entrar alguns partidos judeus ultra-racistas, antes proibidos como terroristas, na sua potencial coligação pós-eleitoral!)

De facto, a definição do anti-semitismo aceite pela UE, à qual Macron terá que conformar-se (veja-se a resolução de 1 de Junho de 2017 do Parlamento Europeu sobre o combate ao anti-semitismo, que se refere à “working definition of antisemitism” adoptada pela Aliança Internacional para a Memória do Holocausto) tem as suas nuances e é mais sofisticada que a definição que Macron referiu ao Conselho Representativo das Instituições Judaicas de França. Contudo, uma reforma da legislação francesa seguindo a referência de Macron correrá o risco de ser utilizada de modo a suprimir a crítica legítima dos crimes do Estado de Israel em relação à ocupação e o Direito Internacional. Ainda mais, esta equivalência da crítica da ocupação com o anti-semitismo vai inevitavelmente aumentar a frustração de árabes e muçulmanos que reconhecem a hipocrisia da Europa em relação à ocupação da Palestina. Esta intenção de Macron não nos servirá e não servirá à luta contra o anti-semitismo. A luta contra a patologia do anti-semitismo tem que ser conduzida de maneira diferente e menos oportunisticamente. Dito isto, aceito e congratulo-me com o repúdio e a supressão do anti-semitismo pela República – mas isso é o mínimo que espero na senda da vergonha do regime colaboracionista de Vichy e após a derrota do Terceiro Reich!

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