Venezuela: o filtro

Muita gente haverá por aí que já desenvolveu ou está a desenvolver (e, afinal de contas, ainda bem...) os mesmos filtros de desconfiança relativamente a intervenções imperialistas – sejamos claros - , quaisquer que elas sejam.

Há algum tempo que, sentindo-nos no meio de tanta mentira organizada, tanta manipulação e tanta intoxicação (des)informativa relativamente a questões geopolítico-económico-militares internacionais, tornámos mais ou menos automático o comportamento de nos afastarmos para reflectir e projectar no futuro a situação em causa.

Comum dos mortais, leigos em relações internacionais ou em ciência política, o único meio de algum discernimento foi-nos sendo conferido através de um filtro reflexivo e prospectivo que, quase inconscientemente, fomos interiorizando.

Sim, tal filtro foi-se-nos germinando e crescendo durante, digamos, os últimos 60 anos, aqueles em que alguma progressiva maturidade e consciência nos permitiram processar reflexivamente o que, de fora, a História, “sem o podermos ignorar”, nos foi dando a "ver, ouvi e ler”.
O filtro é fácil de enunciar: quase todas as situações político-sociais de outros países em que a administração norte-americana intervenha ou se imiscua (de forma directa e abrupta - maxime militar - ou indirecta e secreta, por exemplo, via CIA), para a generalidade das pessoas desses países, objectivamente, têm degenerado em agravada inquinação económica, social, humana, política e, muitas vezes, da paz.
Vietname, Cuba, Chile, Argentina, Brasil, Iraque, Líbia, Síria, Venezuela (também, antes de agora, com o bloqueio económico), são, entre outros, disso exemplos que agora nos ocorrem e cujos tempos vivemos.

O que restou, daí? A indução da criação deste filtro de análise e de projecção, um “abcesso” de desconfiança e de inquietude que, todavia, não se pode deixar de reconhecer que, doentio ou não, nos tem conferido mais lucidez.
Lucidez, na medida em que, por um exemplo aí na ordem do dia, nos tem alertado (parece que, felizmente, há cada vez mais gente no mundo com a consciência desse alerta, talvez também estejam “infectados” com o mesmo “filtro”) para o que nada de bom humana e socialmente possa aí vir (também) para a Venezuela. Ou, dito de forma menos abstracta, para os venezuelanos (e, por eles, não só).

Tanto mais que o filtro se tornou mais fino (logo, mais fiável) ao sabermos, através de um livro recentemente escrito por um ex-director do FBI [1], que o actual presidente da administração norte-americana tem esta preocupação: “Eu não entendo por que não estamos olhando para a Venezuela. Por que não estamos em guerra com a Venezuela? Eles têm todo o petróleo e estão na nossa porta dos fundos”.

A fiabilidade do nosso filtro aumenta com não podermos ignorar que a “liderança” do processo é assumida por alguém que, visível e audível até agora, é, objectivamente, mandatário da actual administração norte-americana. Ainda para mais quando nisso é apoiado por outros indutores, locais (da actual administração brasileira, por exemplo) e não só (por exemplo, por acção ou omissão, de governos da União Europeia), da nossa desconfiança, logo, como se disse, da fiabilidade do nosso filtro.

Mas nada de extraordinário há nisto. Muita gente haverá por aí que já desenvolveu ou está a desenvolver (e, afinal de contas, ainda bem...) os mesmos filtros de desconfiança relativamente a intervenções imperialistas – sejamos claros -, quaisquer que elas sejam.

É que, afinal, este imperialismo também adopta um filtro (digamos que, neste sentido, o nosso é um “contra-filtro”) nessas intervenções, o qual, como se percebe notoriamente ser aqui, também aqui, o da actual administração norte-americana, o filtro da supremacia do poder.

Do poder (geo)mercantil, (geo)militar e (geo)político. Por exemplo, para não ir mais para trás na História, o filtro do poder da “America first”, de Trump, ou do poder da “nação mais rica, mais poderosa e mais respeitada do mundo”, de Obama.
E não, por mais que lhe chamem “humanitário”, o genuíno e desinteressado filtro do serviço. Do serviço de apoio internacionalista ao desenvolvimento económico, social e humano. E, daí, necessariamente, de desenvolvimento político, no sentido da (real) democracia, no contexto e suporte da autossuficiência económica e social e soberania política dos países em causa.

Algo a ter profilacticamente em conta é que também nós, pelo menos por apatia, indiferença, consentimento, omissão, ou, mais ainda, colaboração, poderemos estar  a contribuir para isso se não reflectirmos (e, tanto quanto possível, agirmos) ponderando “filtros” eminentemente humanos, sociais e políticos. E não, fundamentalmente, de poder (ou submissão) económico, militar ou de condicionamento da soberania política.
Este risco mantém-se, claro ou velado, conscientes ou inconscientes que dele sejamos, porque as raízes imperialistas que, já demasiado grossas e ramificadas, explicam a indução e disseminação destes filtros (ou “contra-filtros”, no outro sentido referido) já vêm de longe, de muito longe.
Até nós, (geo)pequenitates agora, também já contribuímos em tempos alguma coisa para isso. Com o que de pouco "humanitário" e muito de perverso imperialismo tiveram, pelo menos à luz actual,... as “Descobertas”.

[1] Andrew G. McCabe – The Threat: How the FBI Protects America in the Age of Terror and Trump (2018)

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