Em 1975, António Reis e Margarida Cordeiro fugiam do bulício da revolução de Abril para olhar uma comunidade distante, que ficava para lá das preocupações políticas imediatas. Para lá do Marão, a dupla encontrou uma relação de cumplicidade e de fazer criativo de que resultou Trás-os-Montes, uma das obras míticas da história do cinema português, e um protótipo de uma etnoficção, em que tempos diferentes coabitam para produzir um retrato complexo de um povo (quase) isolado. Este movimento de deslocamento para uma comunidade “estranha” é similar no processo de aproximação de Renée Nader Messora e João Salaviza com os índios krahô, cujas aldeias se situam no nordeste do estado de Tocantins, no norte do Brasil, próximo da cidade de Brasília. Desta partilha experiencial entre cineastas e índios, resultou Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, um filme realizado por Messora e Salaviza (estreia a 14).
Não é demais salientar que os estudos pós-coloniais reconstruíram as categorias com que o mundo ocidental se olhou durante séculos. A cosmovisão eurocêntrica, branca e privilegiada, passou a ser contestada, já que apenas existia por “oposição” com as outras culturas que essa mesma cosmovisão olhava como menores. Estes novos sujeitos pós-coloniais já não são os outros, agora também têm uma voz. Como Stuart Hall nos elucidou, “aquele que fala, e o sujeito que é falado, nunca são idênticos, nunca estão exactamente no mesmo lugar”. Por isso mesmo, a emergência de um cinema pós-colonial é efectuada a partir da consciência da dificuldade em falar do outro, de uma alteridade que estará sempre lá.
O trabalho de Messora e Salaviza — na transformação da sua experiência numa forma artística — é, no mínimo, impressionante. A vivência continuada — Renée visita a aldeia de Pedra Branca desde 2009, Salaviza desde 2014 — dos cineastas e a sua relação com os krahô permite-lhes conhecer, de um ponto de vista da sua relação de proximidade, os rituais e vivências desta comunidade. Não há, nesse lado experiencial, nada de menos correcto, até porque Messora e Salaviza parecem ter a plena consciência do seu “lugar da fala”. Essa consciência é determinante para olharmos um filme feito pelo olhar de fora, pelos “brancos”. Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos deve, por isso, ser visto pelo seu lado até certo ponto pedagógico e pela sua homenagem a uma cultura ameríndia específica. É nessa perspectiva que a ficcionalização da história de Ihjãc e Kôtô, do seu coming of age indígena, pode ser visto como uma história sobre índios no Brasil contemporâneo. E é, tal como Trás-os-Montes, uma etnoficção de características mágicas, subvertendo as nossas convenções de tempo e espaço.
O trajecto de Ihjãc, o nosso protagonista, é particularmente bonito, pela forma como lentamente aceita a sua passagem a pajé — aquele que assume uma identidade peculiar, comunicando com os mortos e outros espíritos, os indefiníveis carõ —, e pela forma como essa negociação de uma nova identidade se faz pelo cruzamento com a cidade branca, espécie de lugar de ninguém para onde Ihjãc procura fugir do seu futuro. A fuga, no entanto, só intensifica a incomunicabilidade entre os índios e os brancos. Neste contexto, Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos é um filme que celebra o animismo krahô e convida a rever as camadas complexas da realidade. Em certo sentido, podemos afirmar que é um olhar branco fascinando pelas formas de vida ameríndias e pelos rituais de passagem entre vivos e mortos. Dentro dessa dialéctica branca (vivos e mortos) continua a surpreender que, do outro lado, esse fascínio não exista.
A etnoficção de Messora e Salaviza joga, assim, com as crenças animistas dos krahô. Nesse aspecto, a sequência inicial (tal como a final), em que Ihjãc comunica com o pai, já morto, convocam tanto o trabalho de Reis/Cordeiro, como os novos “realismos” do world cinema, de que Apichatpong Weerasethakul é talvez o exemplo mais cabal. Para Apichatpong, não há distinção material entre o sonho e o real, entre os mortos e os vivos. Para Messora/Salaviza, essa é uma realidade dentro do mundo krahô e transportam essa experiência para a sua ficção. Estas sequências exigem ao espectador uma nova relação com os corpos e com cosmovisões não-ocidentais. Isso não é apenas mostrar o lado do outro, mas sim estabelecer uma relação complexa, de negociação entre as histórias e os espectadores.
Socorro-me, de novo, de Stuart Hall: “Todos nós escrevemos e falamos de um tempo e lugar particulares, de uma história e uma cultura que é específica. Tudo o que falamos é sempre ‘em contexto’, posicionado”. O teórico cultural inglês de ascendência jamaicana escreve para perceber o cerne das lutas identitárias do nosso tempo, para as entender à luz de um mundo pós-colonial. Esta ideia é importante porque nos posiciona num “tempo líquido”, para usar a feliz expressão de Zygmunt Bauman. E esse tempo é de uma flexibilidade identitária que põe sempre tudo em perspectiva, e que tem levado a uma profunda reflexão no campo da antropologia. Nesse aspecto, o cinema contemporâneo tem evidenciado muitos exemplos em que se absorve esse lugar a que chamaremos da diferença, um lugar da complexidade em que o significado é sempre diferido, e nunca totalmente compreendido.
Neste contexto, Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos é uma etnoficção no seu sentido mais tradicional, demasiado limpo nas suas posições de conforto entre aqueles que filmam e aqueles que são filmados. A posição do outro é aceite, note-se: a forma como Messora e Salaviza constroem o filme é comunitária, deixando que a realidade e a sua experiência infectem as formas fílmicas. Mas sobra sempre o olhar branco. Sobra sempre o olhar sobre o outro, que é evidente na forma mais política que o filme assume quando o mundo dos brancos se intromete na vida dos krahô. São retratos de uma política localizada, que se reinventa pelas práticas diárias e que, por vezes, não parece mais do que uma forma anedótica de contrapor o Brasil branco das comunidades indígenas. Em certo sentido, é um filme feito no calor político mais imediato, quando a direita radical toma o poder no Brasil e impõe uma agenda económica que põe em causa a sobrevivência dos povos indígenas. É um filme também fascinado pela paisagem natural que encerra a própria aldeia.
O filme de Renée Nader Messora e João Salaviza não deixa de ser um retrato delicado de uma comunidade krahô. É uma forma-história que nos coloca dentro do estranhamento animista. Mas, por outro lado — ou por isso mesmo — é uma etnoficção na qual se exigia uma forma-complexa de entender a profundidade contraditória da comunidade indígena. Nós, brancos, achamos sempre que sabemos olhar o outro com a nossa compaixão, mas faltará sempre entender a diversidade e complexidade desse próprio outro. No mundo pós-colonial, já não pode ser de outra forma.
* Professor da Escola das Artes, UCP/Programador