O dever da decência

Aqueles que pregam contra a intervenção do Estado também o acusam de não velar pela nossa decência.

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1. Quando, na quinta-feira, as rádios, as televisões e os sites dos jornais nos bombardearam com a notícia de que a Segurança Social pagou pensões de sobrevivência e outros benefícios a pessoas já falecidas durante bastante tempo, andei desesperadamente à procura daquilo que, a mim, me parecia mais óbvio: uma referência ao comportamento daqueles que as foram recebendo indevidamente. Nada. Nem uma linha, pelo menos que eu tivesse reparado. A denúncia ia toda direitinha ao Estado, que o mesmo é dizer ao Governo, que permitia que uma coisa dessas acontecesse. Verificou-se que havia algumas falhas nos registos ou falta de fiscalização. Mas o que há de mais nefasto para o país não é isso. É a mentalidade revelada pelo aproveitamento uma falha e o facto de não ocorrer tal ideia a ninguém. 

2. Já contei algumas vezes esta história mas repito-a porque me ajuda a poupar palavras. Há 20 anos, fui ao Instituto Britânico candidatar uma das minhas filhas a uma licenciatura numa universidade britânica. Preenchemos os papéis com as notas do fim do secundário, as habilitações etc., mais os oito cursos em oito universidades a que se candidatava, por ordem de preferência. Tudo rápido e pouco complicado. Quando acabámos, perguntei à senhora que nos estava a atender que certificados devíamos juntar ao processo. Certificados? Mas o que escreveu aí não está certo? Está, naturalmente. Então não é preciso mais nada. Mais tarde, um amigo inglês explicou-me que a lógica era relativamente simples. Partia-se do princípio que a esmagadora maioria das pessoas dizia a verdade. O que se perdia com mais burocracia para apanhar a mentira de meia dúzia de casos não valia nem a pena nem o custo. Poder-se-ia aplicar este princípio em Portugal? A avaliar por quem não terá tido pejo em receber dinheiro indevido de um pensionista já falecido, dá ideia de que não. Mas o que é ainda mais grave, penso eu, é não penalizarmos sequer esse comportamento. Ou, melhor dito, nem nos lembrarmos dele. É mais fácil culpar o Estado ou, no reverso da medalha, atribuir ao Estado a obrigação de garantir tudo: até de garantir que os cidadãos se comportam decentemente. E o que é ainda mais extraordinário é que aqueles que pregam todos os dias contra a abusiva intervenção do Estado nas nossas vidas, também acusam o Estado de não velar pela nossa decência individual.

3. Segundo caso recente. Os hospitais privados abusam da ADSE? Não. A ADSE é que não garante que eles não abusem. Se garantisse, eles não abusavam. Eis outra das polémicas nacionais que corrobora o que acabo escrever. Há já bastante tempo, quando tentava marcar consultas para a minha mãe (ADSE) numa clínica ou hospital privado, a pergunta era sempre a mesma: “Privado ou ADSE? Porquê minha senhora? “Privado amanhã, ADSE daqui a três semanas. ”Os protestos foram os suficientes para o Estado intervir e a discriminação deixar de ser feita. Depois, a ADSE ajudou a implantar os hospitais e as clínicas privadas e deixou de ser necessária a pergunta discriminatória.

Também ainda sou do tempo em que as filas de atendimento de um hospital privado alternavam entre um utente da ADSE e um utente de um seguro privado. Agora, com mais seguros de saúde, já não é tão assim, embora ainda seja bastante assim. Mas há também um número sobre o qual ninguém se interroga e que ajudaria a perceber a importância real da prestação de cuidados de saúde privada no país. Os hospitais privados, como ADSE e com seguros de saúde, representam que percentagem em relação aos universo dos utentes do SNS? E como esse universo somos todos nós, desde que nascemos até que morremos, seria um dado importante para percebermos até que ponto o SNS ainda é dominante e, portanto, fundamental. E porquê? Porque os seguros de saúde representam um encargo significativo para muitas famílias de rendimentos médios, que não os podem pagar. Porque, na sua esmagadora maioria, terminam aos 70 anos, precisamente quando mais precisamos deles. Porque, finalmente, basta uma doença realmente grave, daquelas que precisam de tratamentos muito caros porque muito recentes, para esgotarmos em três meses as poupanças para uma necessidade apenas com os 10 ou 20 por cento que o seguro não paga. E lá vamos nós para o SNS receber o mesmíssimo tratamento sem pagar. E nem é preciso sofrermos de doenças que põem a vida em risco. Há doenças crónicas que exigem tratamentos crónicos – como o nome indica – não muito caros mas o suficientemente para não poderem ser pagos na íntegra pela esmagadora maioria das pessoas, mas que os seguros não pagam. Inventam uma desculpa, mesmo quando são os seguros mais caros de cada Seguradora. Não pagam. E lá vamos nós para o bom do SNS, que nos administra o tratamento sem precisarmos de pagar um tostão. E já agora, outro dado importante para entender esta guerra em torno da ADSE ou do público versus privado, tentando rebater a ideia muito em voga de que é tudo a mesma coisa desde que o serviço seja prestado ao utente e o Estado o pague. Não é. Se for a Paris e ficar doente, não hesite em chamar um médico a casa ou em ir a um consultório privado. Metade da cura virá com a factura, quando lhe pedirem metade do que aqui qualquer médico cobra no seu consultório, já para não falar em deslocar-se à casa do doente. Porquê? Vale a pena pensar. Na França, o sistema de saúde público é através de seguro e qualquer pessoa pode escolher entre o público ou o privado. Os hospitais públicos são muito bons, merecendo a preferência de muita gente. O que o Estado francês paga aos privados está dentro de valores muito razoáveis. Veja, portanto, as diferenças.

4. Há já algum tempo, um anterior ministro da Justiça português contou-me a seguinte história. Quando andava a estudar formas de tornar o sistema de justiça mais rápido e eficiente, lembrou-se de perguntar a um seu colega alemão, ao lado de quem estava sentado no Conselho de Ministros da União Europeia, como é que eles faziam para evitar que as pessoas – testemunhas ou arguidos – faltassem aos julgamentos. O colega alemão decididamente não percebia a pergunta. “Faltassem aos julgamentos? Como assim?” Até que o nosso ministro, bastante embaraçado, percebeu que a questão nem sequer se punha.

5. Se mandasse, propunha uma reforma radical. A partir de agora, a palavra dos cidadãos passa a valer como verdade e a das instituições do sector privado também. Mas, atentando a que, no início, haveria provavelmente mais abusos do que os 1 ou 2 por cento que se verificam no Reino Unido, fazia como os americanos: quem for apanhado a mentir é duramente penalizado. Seja um cidadão que mente perante o juiz ou perante o fisco, seja a VW que mente sobre as emissões de CO2, seja o Deutsche Bank que mente sobre o seu envolvimento nos escândalos do subprime, seja o advogado de Trump que depôs perante o Congresso, depois de ter jurado sobre a Bíblia. Levaria algum tempo, mas poupar-se-ia certamente muito dinheiro.  

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