O que um português não entende, e eu também não

Como é que posso dizer que não é política oficial da Sérvia, disse eu, quando a primeira-ministra recentemente abordou o mesmo tema da mesma maneira?

Ligou-me uma amiga, portuguesa, apaixonada pelos Balcãs e muito curiosa:

- O que é que se está a passar para o embaixador da Sérvia escrever como tem escrito na imprensa portuguesa. Há tensões na região?

- Tensões é que não há mesmo, disse eu. Quanto ao artigo, não o li. O que é que diz?

- Foi no PÚBLICO, disse-me ela. Parece-me que está a relativizar os crimes de guerra e a queixar-se que vocês, os sérvios, são vítimas de injustiça histórica.

- Não faço ideia, disse eu. Não conheço muito bem o senhor embaixador, ele é de extrema direita, não temos muito em comum, mas sei que é um professor universitário e por isso não deve ser parvo. Deixa-me ver e logo te digo.

Li o artigo de opinião, que saiu no PÚBLICO no dia 5 de Fevereiro, no qual o dr. Oliver Antić, na qualidade de embaixador da Sérvia, reage a um texto publicado uns dias antes no mesmo diário sob o título "Há cada vez mais gente a negar o genocídio de Srebrenica".

- Qual é a parte que te faz confusão? Perguntei à amiga, depois de terminar a penosa tarefa da leitura.

- Por exemplo, disse ela. O que quer dizer com isto: “No que diz respeito a Srebrenica, se tivesse havido uma premeditação, condição necessária para a existência de um acto de genocídio, o Exército sérvio teria cercado Srebrenica e não teria deixado ninguém sair da área. No entanto, Srebrenica foi atacada em duas frentes (sul e leste), tendo sido deixados dois corredores (a Norte e a Oeste) para os muçulmanos se retirarem. O Exército bósnio-sérvio forneceu dezenas de autocarros e carros para a evacuação (em 12 e 13 de Julho) de 17.000 crianças, mulheres e idosos para territórios muçulmanos, sendo que muitos deles decidiram ir para a Sérvia(!), onde chegaram e onde vivem ainda hoje em segurança! O número de mortos em Srebrenica nunca foi determinado com exactidão por razões que se prendem com as operações de guerra…” Ora, diz-me só, por favor, se ele quer dizer que vocês expulsaram 17.000 mulheres e crianças dos seus lares, mas que foi duma maneira humana? Que os homens tiverem a oportunidade de fugir mas não a aproveitaram e, em vez de viverem na Sérvia em segurança, escolheram morrer?

- É mais ou menos isso, disse eu. Mas por favor não digas “vocês”, eu não tenho nada a ver com isso.

- Sabes o que é o maior problema deste artigo?, disse-me a amiga. O senhor embaixador não entende que a nós, os portugueses, não nos interessa se no caso Srebrenica houve premeditação ou não, quem iniciou a guerra, se às vítimas foram oferecidas saídas seguras ou não, se e quem teve razões para vingança. Estamo-nos nas tintas para quem é sérvio ou bósnio, quem cristão ou muçulmano, de onde vêm as raízes do ódio. Nós só sabemos que houve um caso em que uns homens armados mataram milhares de prisioneiros de guerra e que foi cometido um crime contra a humanidade. Pouco nos interessam as reflexões terminológicas, se foi genocídio ou não exatamente, se houve cinco ou oito mil vítimas. Estamos horrorizados de qualquer forma. Não consideramos que a vingança possa ser uma justificação e não entendo como um embaixador da Sérvia, ou qualquer outra pessoa, pode reagir noutros termos senão lamentando imensamente o ocorrido e manifestando a esperança de que nunca mais se repita. Não há provas que expliquem a um português o porquê de um Exército matar milhares de pessoas. E não entendemos a reação do embaixador da Sérvia. Há dias o mesmo senhor escreveu um texto sobre Nikola Tesla e eu até fiquei curiosa acerca de homem. Mas o artigo não falava de ciência, nem de tecnologia, nem de invenções; só falava das sangrentas guerras balcânicas e apresentava mil provas em como Tesla era sérvio e não croata.

- Tesla era sérvio, mas da Croácia, disse eu.

- E então? O que interessa isso?

- Nada, disse eu.

- Esse embaixador não vos faz bom serviço, disse ela. Vocês não são assim tão brutos.  

- Então pára de dizer “vocês", disse eu.

- Porquê é que não escreves uma carta ao PÚBLICO?, disse ela. Reage! É o teu dever cívico.

- Eu? Escrever o quê?, disse eu.

- Podes dizer-lhes que isso não é a política oficial da Sérvia, ainda menos do povo. Que são as pessoas de extrema-direita que falam dessa maneira dos horrendos crimes da guerra. Que a grande maioria das pessoas fica sem palavras quando ouve histórias de mortes violentas e assassínios, independentemente da etnia das vítimas e dos autores.

- Como é que posso dizer que não é política oficial da Sérvia, disse eu, quando a primeira-ministra recentemente abordou o mesmo tema da mesma maneira? É melhor não levantar a lebre, a última coisa de que preciso é de brigas com a embaixada do meu país de origem, ficava-me mal. Também ninguém quer saber. E se eu reagir a ideia que fica é que eu andei a discutir na praça pública com um embaixador. Alguém tem que se conter, de manter o mínimo de nível nessa palhaçada toda.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Sugerir correcção
Ler 8 comentários