O psiquiatra vazio de Boris Vian sacrifica-se no São Luiz

A novela O Arranca-Corações, de Boris Vian, sobe ao palco do Teatro São Luiz, em Lisboa, de 14 a 17 de Fevereiro, numa encenação de Nuno Nunes. Uma peça que mantém o tom surrealista e segue as culpas e as vergonhas alheias que o protagonista toma por suas.

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O Arranca-Corações Estelle Valente
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Tiagomorto é psiquiatra, chega à aldeia para ajudar ao nascimento de Noël, Joël e Citroën, e na altura em que o faz — o bilhete de identidade não o deixa mentir — tem um ano de vida. Ou seja, é um homem feito; apenas sem passado. Como se tivesse sido o inventor de si próprio. Tiagomorto chega com o intuito de “psicanalisar”, mas a tarefa não será fácil, porque o texto é escrito pela mão de Boris Vian e, como sabemos, isso equivale a tornar a realidade um pouco mais elástica e surpreendente do que nas páginas de qualquer outro escritor escolhido ao acaso.

Escrita, em 1953, por Boris Vian (noutros dias transformava-se no autor fictício norte-americano Vernon Sullivan), a novela O Arranca-Corações havia de tornar-se um dos títulos mais populares e apaixonantes do escritor surrealista, de leitura essencial em muitas adolescências europeias. No caso do encenador Nuno Nunes (actor com maior regularidade e que vimos, no ano passado, em Perplexos, de Marius von Mayenburg, na encenação de Cristina Carvalhal), trata-se de uma descoberta recente. Ele que agora avança para uma adaptação do livro para o palco da Sala-Estúdio Mário Viegas, do Teatro São Luiz, em Lisboa, de 14 a 17 de Fevereiro, foi convocado para a história de Tiagomorto, de Clémentine e seus três filhos, de uma aldeia em que grassa o horror e onde os seus habitantes lançam para o rio tudo aquilo de que se querem esquecer (a vergonha, a culpa…), pela mão da actriz Sofia Dias. Em cena, Sofia aparece-nos como a criança Citroën ou a empregada Cubranco, ao lado de Emanuel Arada, Ana Brandão, Hugo Sovelas e Miguel Damião.

“Do Boris Vian conhecia sobretudo as canções, os textos musicados e algumas outras obras que tinha lido”, conta Nuno Nunes ao PÚBLICO. “Mas é sempre uma referência muito próxima no teatro” e uma presença pressentida, quase de moto automático, quando se palmilha as ruas do bairro parisiense de Saint-Germain-des-Prés, onde Boris Vian, nos anos 40 e 50, com frequência fazia escutar a sua trompete afinada pela paixão assolapada que mantinha com o jazz clássico chegado a França nos discos vindos para lá do Atlântico. E, de livro nas mãos, O Arranca-Corações interessou de imediato ao encenador graças a uma história que, vestida de absurdo, interpela de forma constante a realidade. “Mas em que a realidade não é apenas a realidade”, sublinha. “É também a construção e o desejo dessa realidade.”

Um outro desafio, entretanto, juntava-se-lhe sem demora e aguçava o seu apetite pela encenação do texto: a sua natureza literária e o que isso implicava na invenção de uma forma com que a palavra escrita (sem qualquer ambição teatral) pudesse ganhar vida nas tábuas de um palco. “Que linguagem, que aproximação, que recursos, que estilo, que espectáculo vamos fazer com isto” eram questões à espera de soluções que não tinham ainda sido testadas. E obrigavam a “confrontar o vazio do palco”, a arranjar maneiras de o encher com o universo particular urdido por Boris Vian, ao mesmo tempo que Nuno Nunes evitava as armadilhas das “adaptações fraquinhas” a que tinha assistido no cinema. E fraquinhas porque “há qualquer coisa do surrealismo na literatura que se exposto ilustrativamente acaba por se perder”.

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O Arranca-Corações Estelle Valente

Até porque neste Arranca-Corações que Nuno Nunes entende tratar sobretudo de incompreensão – “sobre a forma como nos comportamos, sobre a dificuldade que temos de reconhecer o que somos, aceitar e assumir essa responsabilidade”, concretiza –, seria quase pecado tornar tudo explicadinho e sem margem para as interpretações mais díspares. E Tiagomorto, homem sem história, a precisar de se preencher por dentro, assume uma responsabilidade colectiva, colhe a vergonha e a culpa que os aldeões lançam ao rio e chama a si um “papel sacrificial”. “É uma metáfora maravilhosa da grande contradição de sabermos que vivemos numa boa dose de mentira e que tantas vezes temos de fingir que não conhecemos – porque, provavelmente, reconhecer a realidade obrigar-nos-ia a vivermos de outra maneira”, acredita o encenador.

Em palco, canta-se muito, ao som da música de Nico Tricot (colaborador habitual de Manel Cruz e Ana Deus). Canta-se não para espantar quaisquer males, mas para pôr a nu uma vida feita de absurdos e o horror que se esconde atrás de cada porta – dê ela para a rua, para um lar patologicamente obcecado com a segurança das crianças ou para um mundo interior que pode, também ele, mostrar-se como algo medonho.

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