Os ciganos portugueses começam a “sair da clandestinidade”

A séculos de repressão e perseguição, seguiram-se décadas de “dormência”. Agora, há uma espécie de explosão de pequenas iniciativas para promover a inclusão dos ciganos portugueses. Último de uma série de artigos sobre inclusão destas comunidades na UE.

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Paulo Pimenta

Portugal prepara-se para dar um passo inédito. Onze candidaturas ao programa de inserção sócio-profissional da população cigana foram apresentadas por entidades sem fins lucrativos. No próximo dia 19 de Fevereiro dever-se-á saber quem irá avançar, adiantou ao P2 a secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro.

A inserção laboral é reduzida. A avaliar pelos dados divulgados pela Agência para os Direitos Fundamentais da União Europeia, a taxa de participação dos ciganos portugueses no mercado de trabalho formal era de 35% em 2016. E a baixa escolaridade não explica tudo — 76% denunciam discriminação.

Depois de décadas de estudo, Maria José Casa-Nova, investigadora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Minho, ainda pergunta: como é possível não se ter conseguido integrar uma minoria estimada em 45 mil pessoas num país de dez milhões? Como é possível 32% continuarem a viver em barracas, tendas ou caravanas? Como é possível a maioria não ter acesso ao mercado de trabalho?

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Participantes do espectáculo Romani - Ao alcance de todos, que subiu ao palco da Casa da Música, Porto, em Abril de 2015, com interpretação de de alunos do Balletteatro e comunidade cigana dos bairros do Seixo e da Biquinha, Matosinhos Paulo Pimenta

Imagina também o que passará pela cabeça de alguns leitores perante tais questões: “E os que vivem do tráfico de droga? E os que não querem trabalhar, mas viver do Rendimento Social de Inserção?” E imagina-se a responder: “Já pensaram que o mercado de trabalho não lhes é acessível? Já pensaram que sempre que procuram um emprego ouvem que o lugar já está ocupado?”

Não quer desculpar. Quer compreender o contexto em que vivem os ciganos. “O ser humano tem tendência para segregar tudo o que é estranho”, nota em conversa com o P2. “A hostilidade tem subjacente o medo dos ‘outros’. A tranquilidade vem com a ‘mesmidade’.” A hostilidade diminui quando há assimilação, isto é, quando o “outro” deixa de ser “outro”. Quanto mais um grupo resiste, maior a hostilidade. Ora, em geral, a posição da população cigana é: “Nós queremos integrar-nos, mas não queremos perder a nossa cultura.”

Conhecer a história dos ciganos ajuda a compreender as estratégias de evitamento e de fechamento das comunidades ciganas, a atitude de resistência. Por essa história não vir nos manuais de História de Portugal, Bruno Gonçalves, vice-presidente da associação Letras Nómadas, escreveu A História do Ciganinho Chico. No livro infantil, ilustrado por Tiago Moleano Gomes, um rapaz de nove anos é questionado pela professora sobre a história do seu povo e, atrapalhado pelo seu desconhecimento, pede ajuda ao avô Paulo.

Durante muito tempo, nem a origem foi consensual. O mistério foi desvendado em 2012 por um grupo de geneticistas de 15 países europeus — Portugal, Espanha, Reino Unido, Bélgica, Holanda, Hungria, Croácia, Eslováquia, Sérvia, Grécia, Roménia, Bulgária, Ucrânia, Lituânia e Estónia — que se aliou para tentar determinar, através de uma análise ao ADN, a origem dos povos ciganos: saíram do Noroeste da Índia há uns 1500 anos, entraram na Europa pela Bulgária e, há cerca de 900 anos, começaram a espalhar-se por todo o continente.

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Alunos da academia de política das Comunidades Ciganas, organizada pelo Conselho da Europa com o apoio da Associação de Letras Nómadas, em Abril de 2018 Daniel Rocha

Os primeiros ciganos entraram em Portugal na viragem do século XV para o século XVI. O Auto das Ciganas, de Gil Vicente, foi representado na Corte de D. João III em 1521. E volvidos poucos anos, logo em 1526, saiu a primeira lei repressiva: “Que os ciganos não entrem no reino e que saiam os que nele estiverem.”

Aquela ordem ditava apenas o princípio. “Ao longo dos séculos, os ciganos viveram em constante mobilidade e nomadismo — não por essa ser uma característica endémica, mas por serem escorraçados e perseguidos”, sublinha o sociólogo Manuel Carlos Silva, reformado depois de uma longa carreira na Universidade do Minho.

Sucessivos reis promulgaram alvarás ou decretos para impedir a entrada ou para expulsar os ciganos, condená-los às galés, isto é, ao trabalho forçado nas embarcações ou ao degredo nas colónias, proibi-los de falar a sua língua, de usar os seus trajes típicos, de praticar a adivinhação pelas linhas das mãos. Apenas com a Revolução Liberal e a Constituição de 1822 se lhes reconheceu a cidadania. Não se tornaram, contudo, logo cidadãos plenos. Manteve-se até 1985 um regulamento da GNR a estabelecer especial vigilância a nómadas, que na prática era um sinónimo de ciganos.

“Ainda hoje, em Portugal e noutros países europeus, a ciganofobia é um fenómeno bem enraizado”, comenta Maria Manuela Mendes, do Centro de Investigação Universitária do Instituto Universitário de Lisboa. “Os ciganos portugueses constituem o nosso ‘estrangeiro interno’, embora não tenham outra pátria de referência.”

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“Colocando de parte as concepções biogenéticas não científicas e desacreditadas, estamos hoje confrontados com formas de racismo cultural, racismo sem raça”, torna Manuel Carlos Silva. “Para explicar a hostilidade aos ciganos, teremos de articular uma abordagem estrutural, que se prende com constrangimentos de vária ordem, designadamente económicos.”

Como sair disto? Não basta combater a discriminação. A população cigana também “tem de ganhar auto-estima”, salienta Bruno Gonçalves. Já não é tempo de encarar o trabalho assalariado como uma submissão ao “outro”, ao não cigano. Se antes, muitos, como os seus pais, faziam vida digna com a venda ambulante, hoje, o negócio sucumbe perante a concorrência feroz das lojas de produtos asiáticos. “Não podemos deixar de olhar para o futuro, tendo em conta o presente. E o presente é estudar, trabalhar”, diz. “Os ciganos têm de sonhar. Eu sonhei e estou aqui.”

Cresceu num bairro de má fama, no Planalto do Ingote, em Coimbra. O pai nunca aprendeu a ler e a escrever, mas incentivou os quatro filhos a ir à escola. “Ia com o meu pai e com a minha mãe de manhã para o Mercado Dom Pedro V. Ajudava no que podia. Ao meio-dia, almoçava e o meu pai levava-me à escola.” Deixou de o fazer cedo. Precisavam dele para trabalhar.

Bruno Gonçalves não queria passar a vida a contar trocos na venda ambulante e a morar num bairro. Conciliando o trabalho com os estudos, fez o 9.º ano. Fez o 12.º ano. Fez um curso de mediação cultural. E despertou para a necessidade de provocar uma mudança.

Já lá vão 20 anos. Co-fundador da Associação Cigana de Coimbra, Bruno Gonçalves tornou-se, através dela, mediador cultural na Escola do 1.º ciclo do Ingote. Era “a escola com maior incidência de ciganos em toda a Península Ibérica”. “As famílias não valorizavam a escola.” Não havia associação de pais. Os professores ficavam na escola. Era preciso levar os pais à escola e os professores ao bairro. No primeiro ano lectivo, de 1998/1999, o absentismo caiu de 43% para 13%.

Embora problemática, a situação melhorou nos últimos 20 anos — ali e no país inteiro, por força do Rendimento Social de Inserção, do Escolhas, da crescente (ainda que insuficiente) valorização da escola. Pelo Perfil Escolar da Comunidade Cigana, que caracteriza os alunos matriculados nas escolas públicas do continente no ano lectivo 2016/2017, vê-se que duplicou o número de inscritos na escolaridade obrigatória. 

Não ajuda a maior parte viver em tendas, caravanas, barracas ou bairros sociais. “Têm zero modelos”, lamenta Bruno. “Temos de pensar em políticas de habitação diferentes. O cigano precisa do impacto do não cigano e o não cigano precisa do impacto do cigano. Se viver num prédio com pessoas qualificadas, vou desejar que os meus filhos um dia sejam qualificados.”

Recém-licenciado em Animação Socioeducativa, a trabalhar como mediador e formador no Romed, um projecto europeu que acaba de se tornar numa política pública, conhece enfermeiros, operários, miliares e outros profissionais que não assumem a pertença étnica. “Têm a sua vida, os seus compromissos, temem ser postos de lado, sofrer represálias.” Gostava de as ver “sair da clandestinidade”. Para mostrar à sociedade em geral, mas também à sua comunidade, que os ciganos não estão condenados à pobreza e à venda ambulante. E aplaude quando vê dar a cara alguém como Alcina Jacinto Faneca, advogada de Torre de Moncorvo.

“Estamos num ponto de viragem”, acredita Maria José Casa-Nova. Exemplos? Há o 1.º Direito, um programa de habitação para pessoas que vivem em condições habitacionais indignas. Estão a fazer-se guiões pedagógicos com orientações e boas práticas. Para aumentar o número de ciganos no ensino secundário, no próximo ano vão ser atribuídas 100 bolsas de estudo para jovens em transição de ciclo. Para incentivar o acesso ao ensino superior, aumentará o número de bolsas: 30 este ano, 32 no próximo, 35 a seguir e 40 depois. Para abrir o mercado de trabalho, vem aí o programa de Inserção socioprofissional.

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O Estudo Nacional das Comunidades Ciganas data de 2014

A inspiração são os programas de inserção socioprofissional co-financiados pelo Fundo Social Europeu e executados pela Fundación Secretariado Gitano, em Espanha. Rosa Monteiro, porém, não faz comparações com o programa espanhol — o ponto de partida é outro, os recursos também são outros. “Colocámos os objectivos centrais. Vamos ver que metodologias as entidades apresentam para fazer este trabalho de inserção laboral”, diz ao P2. “É importante lançar estes avisos que vão apoiar projectos que serão emblemáticos.”

Já houve algumas experiências pontuais desenvolvidas por entidades sem fins lucrativos, mas nunca houve uma política pública. Agora, há um milhão e meio de euros para um conjunto de projectos, que terão a duração de um ano e meio. São elegíveis acções de orientação profissional que permitam traçar um itinerário de formação, emprego ou auto-emprego, mas também de orientação para percursos formativos completos, com competências básicas, técnicas ou em contexto laboral. E acções de sensibilização de empregadores, mas também de ciganos para a criação do seu próprio emprego.

Dormência

Durante muito tempo, observa Maria José Casa-Nova, “Portugal esteve numa espécie de dormência”. Os diferentes governos só começaram a evidenciar “preocupação formal a partir da década de [19]90, mas não efectivam essa preocupação ao nível de medidas e práticas concretas”.

A Estratégia Nacional de Integração das Comunidades Ciganas só foi aprovada em 2013, por pressão da União Europeia. Parece-lhe evidente que em Portugal, como noutros países, faltou “vontade política”. Para lá da crise financeira e económica, as políticas públicas amigas da população cigana retiravam prestígio e votos. “A decisão política foi a de não concorrer aos fundos comunitários para a estratégia.” Naqueles primeiros anos, o pouco que se fez aconteceu mais “por vontade das organizações não governamentais e pelo activismo político-cívico”.

O relatório de avaliação que se fez em 2016 apontava para uma taxa de execução de 94,1%, só que não havia impacto na vida das pessoas, recorda Rosa Monteiro. O esforço concentrara-se em dois eixos, o do acesso à saúde e o transversal, que diz respeito a mediação intercultural, valorização da história e cultura ciganas, combate à discriminação, promoção da igualdade de género.

Maria Manuela Mendes destaca a importância do Estudo Nacional das Comunidades Ciganas (2014). De resto, resume tudo a “pequenas acções e intervenções”. “São pequenos projectos para acções de curta duração”, avalia. “As candidaturas são muito burocráticas, exigindo que os ciganos estejam organizados em associações formalizadas, sendo necessária a implicação e a mediação de outras organizações.”

A investigadora refere-se a instrumentos específicos. Para envolver a sociedade civil, em 2015, foi lançado o Fundo de Apoio à Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas, que financia projectos de cinco mil euros. Para envolver mais as comunidades ciganas, em 2017 arrancou o Programa de Apoio ao Associativismo Cigano para projectos de 4200 euros. Há, porém, outras iniciativas, como o Romed – Governação democrática e participação comunitária através da mediação, financiado via jogos sociais, e as bolsas de estudo, que fazem parte do Escolhas.

“As pessoas ciganas nem tinham sido envolvidas na construção da estratégia e não estavam a ser envolvidas na discussão e avaliação”, recorda a secretária de Estado. Esse trabalho foi reforçado através de entrevistas e de grupos de discussão, que envolveram 451 não ciganos e 116 ciganos, e de um questionário online, que permitiu chegar a centenas de ciganos. “Houve sugestões e propostas que depois foram acolhidas na revisão da estratégia alargada até 2022.”

Nesta revisão, assumiu-se como prioridades a escolarização, a integração profissional, a melhoria das condições de habitação, bem como o reconhecimento e o reforço da intervenção em mediação intercultural, a melhoria da informação e do conhecimento sobre a história e a cultura cigana, o combate à discriminação, a integração das pessoas ciganas na agenda política e pública.

As mulheres vão receber especial atenção. Estão previstas várias acções de formação sobre igualdade. E na próxima geração do Programa Escolhas, a lançar no início de Março, valorizam-se actividades que combatam práticas tradicionais nefastas, como o casamento precoce.

Bruno Gonçalves está “espantado com os passos que as mulheres ciganas estão a dar”. “Sei que o processo delas não vai ser nada fácil, há muito conservadorismo, muito preconceito dentro e fora das comunidades ciganas, mas nunca em 20 anos de activismos vivemos um momento tão bom.”

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