O que tem feito Bruxelas para mudar a sina dos ciganos?

O quadro europeu de estratégias nacionais de integração dos ciganos está em vigor há oito anos. O acesso à educação melhorou, mas não o emprego. Capítulo I de uma série sobre inclusão destas comunidades na UE.

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O acesso à educação melhorou, mas até há mais jovens que nem estudam nem trabalham. Enric Vives-Rubio

Se não fosse a pressão da União Europeia, as políticas nacionais de integração das comunidades ciganas seriam meramente simbólicas nalguns Estados-membros. Foi a partir de Bruxelas que, há oito anos, se iniciou uma mudança que se adivinha lenta. O que está a falhar? Como acelerar o passo?

Há um consenso entre peritos e activistas. “Ter pensado uma estratégia europeia que depois se traduziu em estratégias nacionais, só por si, foi bom”, salienta o sociólogo Sérgio Aires, que dirigiu a EAPN-Rede Europeia Antipobreza entre 2012 e 2017. “Foi muito importante para pôr o tema da população cigana na agenda política”, concorda Belén Sánchez-Rubio, directora do Departamento de Internacional Secretariado Gitano, entidade que gere a Rede Europeia para a Inclusão da População Cigana (EURoma).

A preocupação começou a notar-se com o alargamento à Europa Central e de Leste, onde se concentram as populações ciganas de maior dimensão. Como lembra Zeljko Jovanovic, director do Roma Initiatives Office, uma estrutura da Open Society Foundations, através dos critérios e políticas de adesão a UE pressionou os países candidatos a pôr fim ao ciclo de pobreza e a diminuir o fosso entre ciganos e não ciganos.

Expulsões em França

O primeiro período de alargamento ocorreu em 2004 e o segundo em 2007 – com restrições à circulação impostas por velhos membros, que temiam “uma invasão”. Os alarmes soaram em 2010. No contexto da crise económica e financeira, o então Presidente de França, Nicolas Sarkozy, promoveu o retorno à origem de milhares de ciganos romenos e búlgaros que viviam em acampamentos clandestinos e depois dele também o executivo socialista liderado por Manuel Valls. Houve protestos na Comissão Europeia e em diversas cidades europeias, incluindo Lisboa.

O que estava a acontecer com a maior minoria da Europa? São dez a 12 milhões de pessoas de diferentes etnias – os roma, os viajantes, os sinti, os manouches, os calés, os romanichéis, os boiash, os ashkalis, os ieniches, os dom, os lom – que se agrupam no nome roma ou ciganos. Não apenas França, mas vários Estados-membros estavam a promover repatriações e regressos forçados de cidadãos comunitários ciganos aos seus países de origem.

Entendendo que grande parte “luta contra um nível intolerável de exclusão" e “sofre uma grave estigmatização e discriminação” e considerando, entre outras coisas, “que a UE desenvolveu uma série de ferramentas, mecanismos e fundos úteis” para combater isso, o Parlamento Europeu solicitou à Comissão que propusesse ao Conselho que adoptasse uma estratégia da UE para a integração dos ciganos. E apelou aos Estados-membros que, fazendo uso de verbas comunitárias, promovessem a inclusão dessa minoria.

Já em 2011, a Comissão Europeia propôs um instrumento político específico: o Quadro Europeu para as Estratégias Nacionais de Integração dos Ciganos. Pela primeira vez, juntar-se-iam forças locais, regionais, nacionais e europeias para “abordar um dos desafios mais graves da Europa: pôr termo à exclusão dos ciganos”.

É preciso ambição

Os vários chefes de Estado e de Governo subscreveram esse quadro europeu, que define como áreas prioritárias a educação,​ o emprego, a saúde e a habitação – o combate à discriminação é transversal. E 27 países assumiram o compromisso de adoptar uma estratégia nacional ajustada à sua população cigana (só Malta considerou não ter população cigana significativa).

Para reforçar a pressão, em 2013 o Conselho Europeu recomendou a todos os Estados-membros que se esforçassem e mandou recados específicos aos cinco países com mais ciganos. Foi nesse ano que Portugal aprovou a sua Estratégia Nacional de Integração das Comunidades Ciganas 2013-2020, que reviu no ano passado. 

A avaliação comunicada pela Comissão Europeia indica que a meta está longe de ter sido alcançada: o acesso à educação melhorou (aumentou a frequência do pré-escolar e diminuiu o abandono escolar precoce), mas o avanço na saúde ainda é pouco, a situação habitacional continua crítica, não foi alcançado progresso relevante em matéria de emprego, há até mais jovens que nem estudam nem trabalham, e nalguns países tem crescido a hostilidade.

O Parlamento Europeu aprovou em 2017 uma resolução a pedir aos Estados-membros que demonstrem ambição na criação das suas estratégias nacionais, que as cumpram e que prestem especial atenção à hostilidade contra os ciganos. E, no final de 2018, a Comissão Europeia anunciou que está a trabalhar numa nova abordagem estratégica. As novas prioridades incluem “um foco claro no combate ao anticiganismo, uma melhoria da parceria e da participação dos ciganos, tomada em consideração da diversidade da população cigana (com ênfase em mulheres, jovens e crianças) e uma melhor fixação de metas”.

“A Comissão não tem ilusões”, nota Jonathan Lee, do European Roma Rights Centre, uma organização internacional dedicada a combater o anticiganismo e a violação dos direitos humanos dos ciganos. “Não espera erradicar séculos de discriminação numa década e já declarou a sua intenção de desenvolver uma abordagem estratégica pós-2020.” 

À espera das eleições

Esse anúncio afigura-se-lhe “um bom sinal”. Só que ninguém sabe qual será o equilíbrio de forças no Parlamento depois das eleições de Maio. E o problema, diagnostica, nem é a UE. O problema é que são os Estados-membros “os primeiros e principais responsáveis por garantir justiça e igualdade aos seus cidadãos ciganos”. 

“Uma boa parte dos países não pôs em prática a estratégia com muita vontade”, lamenta Bruno Gonçalves, dirigente da Letras Nómadas, uma associação que em Portugal desenvolve vários projectos de integração de ciganos. “Em face da apatia, da fraca governação e da falta de compromisso político nos principais Estados-membros com grandes populações ciganas, onde a política é caracterizada por retrocessos democráticos, aumento do racismo e nacionalismo - sem o quadro da UE e a persistência da Comissão Europeia, as estratégias nacionais simplesmente expirariam”, concorda Lee. 

A própria Comissão tirou conclusão semelhante. Na avaliação 2011-2017 que comunicou ao Parlamento admite que, sem o Quadro Europeu, “algumas políticas nacionais e estruturas específicas actuais terminariam ou tornar-se-iam menos operacionais e mais simbólicas.”

Mais eficácia 

Ninguém esperava um milagre. “O Quadro Europeu e as estratégias nacionais tentam melhorar uma situação de exclusão social muito severa, que dura há séculos”, enfatiza Sánchez-Rubio. “Isto é um processo que vai durar muitos anos e que exige que todos nós mudemos. Cada uma na sua posição, a população cigana, mas também a população em geral, tem de mudar a forma de olhar para a outra.” Apesar desta noção, esperava-se mais eficácia. 

Parece-lhe necessário melhorar o uso das verbas comunitárias – o Fundo Social Europeu, o Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional, o Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural, a Garantia para a Juventude. “Como é que a Roménia ou a Bulgária devolvem dinheiro à UE?”, questiona. “Tem a ver com a estrutura administrativa, com a capacidade de gerir, de absorver, de gastar bem.” Nos mais diversos países, nota outro problema. “Na UE, planifica-se a sete anos. Porque é que tantos Estados-membros fragmentam os fundos estruturais e abrem candidaturas a pequenos projectos de um ano, um ano e meio ou dois anos?”, questiona Sánchez-Rubio.

Há também que definir bem as prioridades. “Nos países do Leste da Europa, além de não haver um compromisso político sério, faltou uma política bem orientada, que se concentrasse nos direitos sociais e económicos”, exemplifica. Houve um enfoque no reconhecimento da identidade e da cultura, que não trouxe uma melhoria das condições de vida, do dia-a-dia das pessoas.

Diz-lhe a experiência de Espanha “que é muito mais importante favorecer o acesso à educação, à saúde, ao emprego, do que investir nos reconhecimentos formais”. Diz-lhe essa mesma experiência que os resultados surgem “quando há investimento a longo prazo, quando se consideram os ciganos como cidadãos de pleno direito, quando se tomam medidas para que acedam aos serviços públicos em igualdade de condições”.

Sánchez-Rubio alude aos programas de inserção socioprofissional da Fundación Secretariado Gitano, que em 18 anos ajudou mais de 50 mil ciganos a ter uma experiência laboral e mais de 20 mil a ter emprego. “Estamos a ver mudanças drásticas na vida de muitas pessoas. Se estas oportunidades não se criam noutros países, vamos continuar a alimentar a ideia de que os ciganos não querem educar-se, não querem formar-se, não querem trabalhar.”

A baixa escolaridade, a falta de experiência laboral, a relutância sentida por muitos em trabalhar por conta de outrem não explicam a exclusão quase generalizada dos ciganos do mercado de trabalho. “Há mecanismos de discriminação que impedem pessoas com escolaridade e formação de arranjar um emprego, arrendar uma casa, aceder a serviços públicos de forma igual”, sublinha Aires. 

Combater a discriminação no acesso à educação e ao emprego é mais do que promover direitos humanos dos ciganos. “A sua presença é frequentemente vista como problemática, mas os 12 milhões de ciganos representam um enorme potencial para o crescimento e a inovação”, sublinha Zeljko Jovanovic. 

Ocorre-lhe o exemplo da Iniciativa de Desenvolvimento do Empreendedorismo dos Ciganos, uma rede de empresários ciganos dispostos a formar outros e oferecer-lhes oportunidades de emprego. “Esta iniciativa vai ao encontro de um crescente interesse de ciganos do Leste da Europa que muitas vezes enfrentam discriminações no mercado de trabalho convencional, apesar de terem concluído os estudos universitários”, diz.

Ninguém acredita que a sina dos ciganos pode mudar sem a sua participação nos projectos, na concepção e na aplicação das políticas e estratégias. Há uns anos, recorda Aires, dizia-se que não havia gente preparada. Não lhe parece que essa desculpa seja válida hoje. “Há, hoje, interlocutores ao mais alto nível.” E “isso tem muito a ver com o trabalho que foi sendo feito por várias organizações nos últimos 20 anos e que foi reforçado por várias estratégias nacionais”, remata aquele sociólogo, co-autor da exposição/livro "O singular do plural”, que procura desmistificar o plural ciganos.

Próximo: reportagem em Pontevedra, Espanha, sobre projectos de inserção socioprofissional da Fundación Secretariado Gitano.

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