Que país é este que tolera o feminicídio?

Enquanto formos um país onde viver com medo é normalizado, onde sofrer em silêncio é inevitável, não poderemos cabalmente chamar a nós mesmos república.

Vamos ser brutalmente francos connosco mesmos: se oito pessoas morressem num mês em Portugal por caírem em poços, abria-se um grande debate nacional sobre como fechar os poços, o Governo apresentava um plano de ação, a oposição apertava com o primeiro-ministro no debate quinzenal, o Presidente decretava um luto nacional e os telejornais não falavam de outra coisa até o problema estar resolvido.

Eu sei que é duro dizer que toleramos os assassinatos de mulheres em Portugal. Sei perfeitamente que individualmente, pessoalmente, isto é mentira: eles indignam-nos e perturbam-nos até ao âmago. A todos nós. Sei que quando há algum caso especialmente chocante, não só há primeiras páginas e aberturas de telejornais sobre o caso em si, como há até aqui e ali um debate meritório sobre as causas mais profundas desta nossa trágica realidade. Sei até que já esteve mais longe de ser amplamente consensual o reconhecimento de que Portugal tem um problema estrutural de violência doméstica (não somos os únicos, Espanha também o tem, e incluo neste conceito de violência doméstica agressões físicas e psicológicas, a mulheres, homens, idosos e crianças) e, dentro deste problema, uma recorrência hedionda de assassinatos de mulheres. Mais chocante ainda, entre essas mulheres assassinadas — em torno de três dezenas cada ano, nos últimos anos, mas já oito no primeiro mês deste ano — há vários casos documentados de mulheres que fizeram queixa e pediram ajuda e não foram protegidas.

O que falta, então? Falta o resto, que é tudo para podermos dizer de uma vez por todas que, enquanto país, não toleramos o feminicídio. Falta que o Parlamento, como já aqui sugeri, e como ocorre noutros parlamentos, leia os nomes de todas as vítimas, pare os seus trabalhos e proceda solenemente a um minuto de silêncio. É simbólico, sim, mas o que se pretende com esse simbolismo é pôr os nossos representantes perante a violência — que eles e elas conhecem e respeitam, sei que sim, mas o impacto de um voto solene é mais profundo — e levá-los a agir para que não tenham de tantas vezes levantar-se em memória de tantas vítimas da violência machista.

Falta depois que esses deputados e deputadas mudem a legislação para reforçar o apoio à vítima imediatamente após a primeira queixa. Que haja meios para que uma vítima de violência doméstica possa ser imediatamente protegida, removida da situação de perigo, e apoiada para ganhar autonomia e refazer a sua vida. Que façam da dotação orçamental para esses meios uma linha vermelha na negociação com o Governo. Que o Governo estipule, na tutela que exerce sobre as forças de segurança e os protocolos de ação do Ministério Público, que a regra passará a ser a prevenção automática por um período prolongado após a primeira queixa, independentemente das vicissitudes da tramitação do processo. É intrusivo? Será. Melhor prevenir do que ficar perante a tragédia de nem sequer já poder remediar. Há que criar esquadras especializadas no atendimento às mulheres, aumentar as linhas dedicadas, realizar mais formações com o pessoal policial e hospitalar na linha da frente. É preciso testar, avaliar, voltar a tentar de outra forma se necessário. Tudo menos baixar os braços. Tudo menos assumir que este “olha, mais uma” é a nossa normalidade.

Neste debate — como noutros sobre problemas estruturais no nosso país — não temos pior inimigo do que a ideia de que “não é possível erradicar este fenómeno”, “há sempre violência nas relações”, “isto é um problema cultural”, “é preciso começar na escola e na família”. Lugares-comuns e banalidades, uns mais corretos do que outros, mas todos assumindo o derrotismo ou adiando as soluções. Quando ouço um responsável político dizer que não é possível erradicar o problema que é suposto dever erradicar, percebo sempre que estamos perante alguém que já desistiu antes de começar a tentar. O que quer dizer erradicar, neste caso, a violência machista e o feminicídio? Significa prometer que nunca mais haverá um assassinato? Não. Significa ter como objetivo que as fatalidades passem a apenas ocorrer com tal raridade que o problema deixou de ser estrutural. E essa meta está ao alcance das políticas públicas se a proteção às vítimas for feita sistematicamente e se os agressores perceberem imediatamente que têm o braço da lei sobre si.

Para além disso, é sim verdade que há todo um mundo de coisas a fazer na educação, na família e na cultura, mas as vítimas não podem esperar por essas mudanças enquanto correm perigo. Que diabo, para que morresse menos gente nas estradas claro que seria bom uma mudança de cultura, mas não deixámos de obrigar as pessoas a usar cinto de segurança ou deixar de beber enquanto conduziam — com vigilância, punição, informação e as outras ferramentas normais das políticas públicas — enquanto esperávamos que a cultura mudasse, certo? Aqui trata-se de um assunto muito diferente, mas a lógica tem elementos semelhantes: é bom que a cultura mude, mas não faltam medidas — vigilância, punição, informação, apoio, proteção — a tomar antes disso.

E porquê? Por uma razão muito simples. Porque este não é um tema da “vida pessoal” ou da “intimidade” que possamos retirar do espaço republicano. Há uma definição de república que resumo assim: “república é cidadãos sem medo, cidadãos com voz e uma comunidade que protege os seus mais vulneráveis”. Enquanto formos um país onde viver com medo é normalizado, onde sofrer em silêncio é inevitável, e onde se pede ajuda à comunidade e ela não protege quem tem medo e por uma vez quebrou o silêncio, não poderemos cabalmente chamar a nós mesmos república. E não poderemos cabalmente dizer que, enquanto comunidade política, é para nós intolerável o feminicídio.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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