Sob o sol de Pialat

Não há gaveta do naturalismo que segure Maurice Pialat e a sua obra comovente - umas semanas com o cinema dele.

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Maurice Pialat WILLIAM KAREL/SYGMA VIA GETTY IMAGES

Enquanto espero por This Sweet Sickness (1960) de Patricia Highsmith, escritora que perseguimos com a mesma convicção dos seus heróis criminosos, volto às adaptações do livro, a Hitchcock Hour (1962) e a Dites-lui que je l’aime (Claude Miller,1977). Hitch que adaptara Strangers on a Train (primeiro Highsmith,1951) — dois pés que se tocam, protagonistas que trocam crimes como uma permuta de identidade — intitulou o episódio de Annabel, a figura sobre a qual o protagonista investe, a tomar de assalto o que deseja (Highsmith abeira-se do romantismo de Goethe), acerta no protagonista — Dean Stockwell — figura infantil e sonhadora, o Rapaz dos Cabelos Verdes (Losey, 1948): David Kelsey, que durante a semana é um engenheiro respeitado, aos fins de semana viaja para outra cidade, onde construiu uma casa para a antiga namorada, assume a identidade de William Neumeister e fantasia uma vida partilhada com Annabel.

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Dites-lui que je l’aime (Claude Miller, 1977)

Miller elegeu Gérard Depardieu para o protagonista aprisionado e melancólico (assiste a Rebecca de Hitchcock numa das primeiras cenas), enfiado em viagens de carro que atravessam montanhas de Inverno, combinação de doçura e de fúria, acentuada no uso do corpo, um invencível nas cenas de luta. As adaptações alinham no espirito do livro, no desprezo do solitário protagonista pelas convenções, homicídios executados como actos ordinários, crimes sem castigo, um mundo irracional e repleto de ambiguidades. A fechar as narrativas, as adaptações perdem-se do livro, da assunção de protagonismo do duplo Neumeister, uma troca como quem representa um papel, um possível contra-campo de si próprio, a ampliar a empatia do leitor.

Em Sous le Soleil de Satan (1987), Depardieu é expulso da sua paróquia e recebe de Maurice Pialat, sacerdote mais velho, o seguinte ditame: “Você não nasceu para agradar. O mundo odeia o seu desejo de poder. Quando vencerá a desconfiança e a oposição dos outros? A negação de todos? Nunca irão deixá-lo.” Pialat, como se pensasse alto, sobre o seu percurso, a antecipar a pateada na entrega da Palma de Ouro. Umas semanas com o Cinema dele: reencontro com L’ Enfance Nue (1967), reverso de Les Quatre Cents Coups (1959), sem a caução da cidade cinema de Truffaut, o inicio de uma via solitária que escolheu outras geografias, a província; Nous Ne Vieillirons Pas Ensemble (1972), um realizador à deriva e num caos sentimental, armado de uma câmara que abre caminho através de uma arruada, uma fúria que só se esbate nas viagens entre a cidade e o mar; intimidades, famílias e morte, do definhar vagaroso da mãe em La Gueule Ouverte (1974), do desaparecimento do pai no derradeiro Le Garçu (1995), um realizador tão obstinado como Van Gogh (1991) na penúria dos últimos dias, que se fez transbordar para dentro do plano, um velho padre e um pai (À nos Amours, 1983), severidade que termina em ternura; e, por fim, a performance de um corpo, do desmedido Depardieu, aos tombos com Huppert e Marceau em Loulou (1980) e Police (1985). Pialat nada nos adianta das personagens, as suas acções e a duração das cenas revelam as suas motivações, o filme constrói-se à nossa frente: idiossincrático, não há gaveta do naturalismo que o segure, uma obra comovente.

Vítor Ribeiro, programador do Close-up — Observatorio de Cinema na Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão

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