Maurice Pialat: Um cineasta à parte

Talvez fosse um cineasta maldito, e mesmo não o sendo essa era, seguramente, uma imagem de si próprio que Maurice Pialat fazia alguma coisa para cultivar. Em parte por essas mesmíssimas razões, Pialat era certamente um cineasta mal-amado: ficou célebre a monumental pateada com que a plateia do Festival de Cannes de 1987 o acolheu quando subiu ao palco para receber a Palma de Ouro conquistada com "Sob o Sol de Satanás"; e ainda mais célebre ficou a frase com que, nessa ocasião, respondeu ao público que o assobiava: "Se não gostam de mim, o mínimo que vos posso dizer é que eu também não gosto de vocês." Pialat encorajou (como se vê por este episódio) a reputação de mal-humorado, intempestivo, bruto, características da personagem que o cineasta criou para si próprio. Não era, no entanto, apenas uma questão de reputação ou de construção de uma persona, havia mesmo em Pialat uma espécie de constante exasperação, um estado de permanente crispação (que em mais do que um sentido corresponde à crispação permanente pode servir para caracterizar o estilo dos seus filmes), que certamente explicará por que razão as rodagens de Pialat ficaram famosas por serem difíceis, crivadas de discussões e gritaria. Explicará (tanto quanto será explicada) também a própria natureza, extremamente ambígua, da relação de Pialat com os diversos eixos do cinema francês - foi alguém que esteve quase sempre à parte, restando saber cabalmente se isso acontecia por ele não aceitar os outros, se por os outros não o aceitarem a ele."O cinema é a verdade do momento em que se filma"A verdade é que Pialat nunca fez parte de qualquer família cinematográfica francesa (por mais ou menos aproximáveis desta ou daquela que os seus filmes fossem), e se começou a filmar em plena nouvelle vague (o seu primeiro filme, a curta-metragem "L' Amour Existe" é de 1961) nada, para além da coincidência temporal, o aproxima sequer desse movimento. De resto, a marginalidade de Pialat (que é, de modo quase indesmentível, um facto) terá muito mais a ver com questões de personalidade do que propriamente com questões de cinema. Várias vezes o sucesso comercial veio ao seu encontro, assim como veio a consagração crítica, nalgumas ocasiões as duas coisas em simultâneo (por exemplo num filme como "Aos Nossos Amores", em que emergiu Sandrine Bonnaire). Se, cinematograficamente, Pialat não era bem um marginal é porque, no fundo, as suas principais preocupações temáticas e formais se inserem numa tradição que teve desde sempre uma especial importância no cinema francês: a busca de um naturalismo que ultrapassasse os estereótipos que lhe são inerentes e caminhasse em direcção a uma autenticidade capaz de restituir a complexidade das coisas e dos seres postos em frente da câmara. Dessa veia naturalista assim entendida, Pialat, com o seu cinema em bruto, de arestas normalmente deixadas por arredondar, a sua atenção ao tempo e à duração dos planos, acabou por se tornar uma das mais arquetípicas referências. Se nem tudo o que Pialat fez se integra pacificamente nessa categoria (lembremos "Sob o Sol de Satanás", onde adaptava Bernanos num filme que não podia deixar de responder a Robert Bresson), é difícil negar a impressão de que toda a escola naturalista francesa contemporânea deve, nos melhores e nos piores exemplos, alguma coisa a Maurice Pialat. "O cinema é a verdade do momento em que se filma" é uma frase de Maurice Pialat que bem podia ser o mote do seu cinema. Essa crença tinha, naturalmente, inúmeras consequências sobre os actores, afinal os principais suportes dessa "verdade do momento em que se filma". O cineasta tinha fama de praticar alguma crueldade na relação com os actores dos seus filmes, o que lhe valeu algumas zangas (a com Depardieu também ficou famosa). No entanto outros, como Isabelle Huppert, compreenderam e defenderam a necessidade dessa crueldade e dessa brutalidade, sublinhando como era importante, no cinema de Pialat, que os actores não se sentissem demasiado seguros de si, nem demasiado confortáveis. Nesse domínio, em tudo o que toca na área do trabalho com os actores, há qualquer coisa de verdadeiramente especial no cinema de Pialat. Como se viu muito bem naquele que acabou por ser o seu filme de despedida, "O Miúdo" (1995), pequeno apogeu do naturalismo segundo Pialat e um dos seus melhores filmes de sempre.

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