Encenando o corpo político

Desestabilizando as expectativas do público perante aquilo que pode ser uma performance de dança, a artista e coreógrafa cipriota Maria Hassabi convida a audiência a um inquietante abrandamento durante uma hora.

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“Há momentos em que novas palavras são necessárias para convocar novas assembleias”, referiu Bruno Latour em We Have Never Been Modern (1993), a sua crítica seminal às constituições da modernidade, em que evidencia a hibridez entre as ciências e as humanidades, e sublinha a urgência democrática de se convocarem “parliaments of things” [parlamentos de coisas] em torno dos imbróglios da contemporaneidade.

No passado domingo, a artista e coreógrafa cipriota, sediada em Nova Iorque, Maria Hassabi apresentou STAGED? (2016) _undressed, encenando não somente uma massa híbrida de corpo(s) em exploração de uma temporalidade lenta e recorrendo a uma coreografia de ínfimo detalhe, como encenando também uma temporária assembleia de públicos sentada no chão do hall do museu, fora do horário de funcionamento do mesmo, em torno dessa amálgama policromática e abstracta em micromovimentos. Complicando protocolos de apresentação de práticas como a dança ou a performance nos museus — recentemente com enorme presença no contexto museológico, mas tradicionalmente apresentadas no auditório segundo as convenções teatrais — e desestabilizando as expectativas do público perante aquilo que pode ser uma performance de dança, Hassabi convida a audiência a um inquietante abrandamento durante uma hora, quando lhes apresenta uma performance de quatro performers vestidos com figurinos de design muito colorido e padronizado, que contrastam com uma temporalidade tão densa quanto distendida, em que cada gesto é resultado de uma notação coreográfica meticulosa, cada olhar dos performers pontuado com precisão, e em que o membro de um parece pertencer a outro corpo, numa morfologia composta por seres estranhamente abstractos, humanos entre o natural e o artificial, entre a figura tridimensional e a imagem. 

STAGED? (2016) _undressed é uma das diversas interacções do díptico STAGED? e STAGING, resultado de um trabalho que a artista tem vindo a desenvolver há mais de cinco anos entre as convenções do espaço expositivo e do espaço teatral. Enquanto STAGED? exporta para o espaço expositivo convenções do teatro, com uma dramaturgia precisa, entrada e saída dos performers no espaço e duração definida (como foi o caso em Serralves), STAGING é uma live installation duracional apresentada em loop nos espaços mais inesperados dos museus, como escadas de entrada ou corredores de acesso, e durante todo o período de abertura da instituição. STAGED? (2016) _undressed é a versão despida de desenho de luz, sonoplastia e cenário (uma carpete cor-de-rosa forte que acentuava a tactilidade do conjunto e cuja cor é uma humorística evocação do Movimento Me Too, nos EUA).

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Com a quietude, o silêncio e a antiespectacularidade de STAGED? (2016) _undressed, Hassabi convoca, por um lado, uma política de atenção que contraria a aceleração capitalista e tecnológica contemporânea e a imediatez das redes sociais, exigindo ao público uma disponibilidade de tempo e de foco quase meditativo. Por outro lado, com uma desconcertante estranheza e subtil perspicácia, STAGED? (2016) _undressed desestabiliza uma série de dualismos — entre o sujeito humano e o objecto, o animado e o inanimado, o orgânico e o inorgânico, os corpos esquecidos e os corpos produtivos, a escultura e a performance, o corpo em movimento e a imagem fotográfica —, inviabilizando qualquer expectativa de narrativa ou literalidade, activando o corpo político através da experiência da quietude, da inacção e do silêncio.

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