A ocasião fez o ladrão em Tancos

O trabalho da comissão parlamentar só teve, até agora, dois incidentes: a recusa, pelo PSD, do presidente que foi eleito eleito e a imposição pela esquerda de um relator socialista. De resto, as audições são demasiado transcendentes para jogos políticos.

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Filipe Neto Brandão (PS), ao tomar posse como presidente da comissão de inquérito Daniel Rocha

A ilustração de vox populi da insegurança - a ocasião faz o ladrão - é a súmula das primeiras sete audições da comissão parlamentar de investigação a Tancos. Em causa estão os meios de segurança, física e material, mas o nó górdio é a inexistência de um comando único responsável pela gestão dos materiais e, simultaneamente, da vigilância.

“Não existia diluição do comando, mas era preferível haver uma unidade que fizesse tudo, da gestão administrativa à segurança”, admitiu o coronel Alves Pereira, comandante dos Pára-quedistas, uma das quatro unidades encarregadas da segurança mensal, num esquema rotativo, aos paióis de Tancos. Foi o oficial que mais longe foi na avaliação do sistema utilizado, e que envolvia unidades militares próximas: Infantaria 15, Engenharia 1 e Pára-quedistas.

A decisão foi da hierarquia, como também foi de responsabilidade superior a diminuição do número de efectivos. Por isso, o tenente-coronel Marques Tavares, que assinou um despacho em Fevereiro de 2006 estipulando a redução dos militares em tarefa de segurança de 44 para oito soldados de Tancos – um sargento, um cabo e seis soldados – vai ser citado para apresentar os seus motivos.

A manta é curta

Os oficiais até agora ouvidos durante quase 30 horas cumpriram ordens, adaptando-se às realidades de escassez de meios. “Quando a manta é curta e não chega para tudo, há que priorizar e correr riscos”, admitiu o coronel de Infantaria Ferreira Duarte, exonerado temporariamente de funções após o assalto, 15 dias depois reconduzido e a frequentar o curso de promoção a oficial-general. “As chefias determinaram que era exequível o sistema de segurança”, recordou o coronel pára-quedista Dionísio Pereira. “A segurança do paiol era considerada suficiente pelo escalão superior”, garantiu o coronel de Infantaria na reserva Vieira Esperança.

Presente em todas as audições esteve a falta de meios humanos nas Forças Armadas depois do fim do Serviço Militar Obrigatório. Já na passada quinta-feira, o coronel Mendes Martins, agora à frente de Engenharia1, foi mais longe e quantificou a escassez no seu caso: tem 50 por cento dos efectivos que devia, os praças estão a 35%, e desde Outubro passado tem uma redução mensal de seis praças, a maioria contratados e do Norte, que, quando renovam o contrato, saem para unidades próximas das suas casas.

Duas ou três estrelas

Também o coronel Vieira Esperança lamentara a curta duração do contrato que lança para a vida civil indivíduos de bairros problemáticos e militarmente bem preparados, mas sem saídas profissionais: “É um problema de segurança transversal, temos que analisar se este é o método correcto.”

Com oito homens por turno de 24 horas, a degradação das instalações, das redes corroídas pela ferrugem aos sensores e videovigilância inexistentes, assim se foi traçando o panorama das Forças Armadas nas últimas década, tendo Tancos como case study. As insuficiências, garantiram todos os sete comandantes, foram comunicadas superiormente e constam dos relatórios. Até onde chegaram na escala hierárquica do Exército é o que falta apurar, mas quem permitiu uma prática de “serviços mínimos” de vigilância tem de a justificar e, por ela, ser responsabilizado. “Tem duas ou três estrelas”, anteviu o deputado Jorge Machado, do PCP. 

Das citações do relatório de averiguações do Exército após o assalto, nasce ainda a inquietante sensação de que vigiar Tancos era tarefa considerada menor, mesmo subalternizada pelos homens das rondas das diversas unidades. Com um potencial de contaminação para uma acção que não era encarada com a seriedade devida. Este laxismo não nasceu na base militar, foi alimentado pelas insuficiências técnicas e humanas da segurança, e atinge a hierarquia pelas múltiplas referências à escassez de meios e aos cortes. 

Nesta fase da comissão ainda não se chegou aos governos. “Houve inabilidade política dos governantes, o que não resguardou o bom nome das Forças Armadas”, admitiu a deputada Joana Barata Lopes, do PSD. “Há um antes e um depois de Tancos [do assalto], temos de fazer uma leitura enquadrada, numa perspectiva cronológica”, anunciou o deputado socialista Ascenso Simões. “Houve um falhanço clamoroso do Estado na defesa [dos paióis], há que esclarecer quem prevaricou”, insistiu João Vasconcelos, do Bloco de Esquerda.

Obra de amadores

Se a ocasião faz o ladrão, o assalto a Tancos foi para o comandante pára-quedista Alves Pereira, “obra de amadores”. O coronel não desconhece, como lhe fez notar o deputado António Carlos Monteiro, do CDS, que uma acção amadora não só surpreendeu as Forças Armadas como levou à demissão do ministro da Defesa Nacional, do então chefe do Estado-Maior do Exército (CEME) e a dez detenções. Mas a intervenção com frases mais assertivas que defensivas do oficial pára-quedista põe em evidência ainda mais as deficiências de segurança.

A quem escuta, fica o sobressalto e a dúvida de conluio interno no roubo, mas nenhum dos militares admitiu tal suspeita. Relatos sobre como era feita no passado a tarefa encomendada das rondas não sossegam. “Nos anos 90, em Tancos, rondas controlavam rondas”, recordou o coronel Mendes Martins os seus dias de oficial de dia, quando ainda estavam eficientes os sensores e videovigilância. Assim, era impensável um período de 20 horas sem rondas, nem apeadas nem montadas, como ocorreu no dia dos autos, ou seja, em 27 de Junho de 2017, dia do assalto de Tancos.

Estratégia de comunicação

Na comissão parlamentar, houve, também, outra revelação. As exonerações dos comandantes das unidades que faziam segurança decididas pelo então CEME, general Rovisco Duarte, tiveram como propósito tranquilizar a opinião pública durante a fase de averiguações. “Fiquei com a percepção de que se estava a fazer o possível para não dizerem que nós nos estávamos a defender uns aos outros”, considerou o coronel de Infantaria Correia Duarte.

Dito de outra forma, que foi montada pelas autoridades militares, inevitavelmente com o beneplácito do então ministro Azeredo Lopes, uma estratégia de comunicação garantindo a transparência do processo de averiguações. O que por si só revela que os comandos militares tinham consciência da má imagem que o assalto causou na sociedade e da necessidade de procedimentos acima de qualquer suspeita corporativa.

Elefante branco

Quase dois anos depois, perante a forma peculiar como o material de guerra foi devolvido, a imagem do Exército e das Forças Armadas não melhorou. No caso do Exército, Tancos foi considerado na semana passada na comissão parlamentar de Defesa Nacional por Ascenso Simões, do PS, como “um elefante no Exército”, e o actual CEME, general Nunes da Fonseca, reconheceu a existência de clivagens no seu ramo.

As bancadas da comissão de inquérito afinam pelo mesmo diapasão, ao reiterarem, em cada audição, que pretendem restaurar o prestígio das Forças Armadas. Esta unanimidade dos parlamentares teve, no entanto, duas quebras. Na tomada de posse da comissão parlamentar, o deputado Carlos Peixoto, do PSD, pôs em causa a independência do presidente da comissão, o socialista Filipe Neto Brandão.

Alegou que por Neto Brandão ter sido eleito na Assembleia da República para a comissão fiscalizadora dos Serviços de Informação da República teria incompatibilidades, caso a secretária-geral do organismo viesse a ser chamada, como vai ser, a depor. Dez minutos antes da constituição da comissão, como o próprio referiu ao PÚBLICO, Carlos Peixoto colocou o problema ao presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, e ao presidente da comissão, Neto Brandão. O deputado do PSD sugeriu que a questão fosse encaminhada para a subcomissão de ética, mas Ferro Rodrigues anunciou que não assumiria tal diligência. “A responsabilidade passa a ser do presidente da Assembleia”, concluiu o deputado do PSD.

O segundo momento teve lugar com a eleição, à esquerda e pela esquerda, do deputado socialista Ricardo Bexiga como relator da comissão parlamentar de inquérito. A direita, proponente da comissão de inquérito, avançara com a candidatura da deputada Joana Barata Lopes, destacando que a comissão de inquérito já era presidida pelo socialista Filipe Neto Brandão, mas a esquerda vetou em bloco a parlamentar do PSD. No primeiro caso houve desconfiança, no segundo rolo compressor partidário.

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