Movimento de cidadãos contesta “monstro” da Gandarinha

Construção de novo hotel e do parque de estacionamento é desde há um ano criticado pela população que diz que a Paisagem Cultural de Sintra se desfigurou mesmo à entrada do centro histórico da vila.

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O estado da obra em Fevereiro de 2018 Sebastiao Almeida

É um projecto que tem sido contestado desde que apareceram as primeiras escavadoras junto à ruína da Casa da Gandarinha, em Sintra. Em 2017, depois de um complexo processo jurídico e urbanístico que se estendeu por duas décadas, começou a ser construído o Turim Sintra Palace Hotel que, além da recuperação da fachada da casa do século XIX, contempla também a construção de dois “blocos contemporâneos”, para quartos e serviços ao lado da casa centenária.

Para isso, fizeram-se escavações na serra, o que chamou a atenção da população, que alertou para o corte de árvores e a demolição de muros antigos, alegando que essas intervenções são “uma ofensa irreparável ao património de Sintra” e à paisagem cultural da vila, classificada como Património Mundial da Humanidade pela UNESCO.

Desde então, têm chovido críticas que se adensaram agora que a obra avançou e os blocos de betão se impõem na serra numa área que se insere na Zona Especial de Protecção do Castelo dos Mouros, Cisterna e Igreja de Santa Maria.

O movimento de cidadão QSintra considera que esta obra é “aberrante e inadmissível” e que “além do seu enorme impacto paisagístico, representa um sintoma preocupante quanto ao sistema de gestão do património que a viabilizou”.

“Basta um simples olhar para concluir que se trata de um atentado às mais elementares regras de defesa do património e às características morfológicas, paisagísticas e arquitectónicas de Sintra que justificaram a classificação deste lugar único”, escreve este grupo de cidadãos. 

O QSintra aponta, por exemplo, que o facto de a nova construção ter uma área de 5521 metros quadrados (a que acrescem os 2846 m2 de construção pré-existente) num terreno com 5843 m2 impermeabilizará praticamente a área total terreno que se situa numa encosta da serra, onde decorreram escavações profundas. 

Por isso, o grupo escreveu uma carta dirigida ao primeiro-ministro, ao Presidente da República, aos ministros da Cultura e do Ambiente, à câmara de Sintra, ao ICOMOS Portugal e à Comissão Nacional da UNESCO, entre outras entidades, em que contesta o projecto e pede a intervenção das “entidades competentes” para que “investiguem as irregularidades do processo de licenciamento da obra e os seus impactos negativos”. A carta foi subscrita por mais de 300 cidadãos.

“Na fase em que está, e embora sejam já irreparáveis muitos dos seus efeitos (destruição de muros, árvores, jardim, penedos, linhas de água, impermeabilização do terreno, etc.), acreditamos que a obra poderá ainda ser alterada no sentido de minorar o impacto paisagístico num caminho iconográfico de Sintra”, defende os cidadãos. 

Um processo complexo

Após décadas ao abandono, o imóvel foi comprado em 1997 pela empresa Urbibarra. No entanto, ao longo de duas décadas, o projecto foi sofrendo avanços e recuos. Em Setembro de 2015, foi aprovado um projecto para 92 quartos e 137 lugares de estacionamento pelo então presidente Fernando Seara. Dois anos mais tarde, o Ministério Público, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Sintra, questionou a autarquia por infracções ao Plano de Urbanização de Sintra. No entanto, esta acção não conteve o projecto e o mesmo acabou deferido a 10 de Janeiro de 2011.

Além de todos os avanços e recuos, as obras começaram sem que tivessem sido realizados estudos hidrogeológicos nem sido feito o acompanhamento arqueológico, o que havia sido pedido, em 2005, pelo então Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico (Ippar) 

A obra só arrancou em 2017 e avançou sem que tivessem sido realizados estudos hidrogeológicos e sem acompanhamento arqueológico, o que havia sido pedido, em 2005, pelo então Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico (Ippar). A aprovação do projecto por esta entidade dependeria da realização destes estudos, já que a obra implicaria escavações e movimentações de terras numa zona classificada. 

Quando o PÚBLICO questionou a autarquia, em Março de 2018, sobre o facto de não constar qualquer referência à realização destes estudos no processo camarário, o município afirmou desconhecer essas possíveis irregularidades e sublinhou que as autorizações que licenciaram o empreendimento “tinham sido apreciadas e concedidas em mandatos anteriores à gestão do actual presidente da câmara”, determinando a abertura “imediata” de um inquérito. No entanto, foi com Basílio Horta à frente da câmara de Sintra, que a autarquia revogou a caducidade do licenciamento, que tinha sido decretada em 2013 por Fernando Seara, por ausência do pedido de emissão do alvará.

Terminado o inquérito, cuja investigação demorou umas semanas, a autarquia concluiu que a realização destes estudos era “uma mera recomendação aos serviços camarários”, pelo que o inquérito deveria ser “arquivado”. E que o estudo hidrogeológico tinha sido entregue pelo promotor da obra no início de Junho de 2018, numa altura em que a obra estava já avançada.

“A volumetria da obra aumenta de dia para dia e ‘o monstro’ impõe-se cada vez mais na paisagem e mancha vários pontos de vista”, escreve o QSintra. Para estes cidadãos, a “‘reabilitação’ da Quinta da Gandarinha é um exemplo do que não pode voltar a acontecer" e que deixa os sintrenses "muito preocupados" quanto a novos projectos hoteleiros e imobiliários anunciados para a vila. 

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