Vai nascer um hotel na Gandarinha mas teme-se o impacto da obra

Depois de quatro décadas votada ao abandono, a antiga Casa da Gandarinha será o Turim Sintra Palace Hotel. As obras que ali começaram alertaram alguns munícipes que temem que a Paisagem Cultural de Sintra se desfigure mesmo à entrada do centro histórico da vila.

Edifício, área urbana
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A casa foi construída em 1888 pelo Conde da Penha Longa para servir de hotel, mas acabou doada para acolher uma instituição de apoio social Sebastião Almeida
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A casa foi construída em 1888 pelo Conde da Penha Longa para servir de hotel, mas acabou doada para acolher uma instituição de apoio social Sebastião Almeida
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A casa foi construída em 1888 pelo Conde da Penha Longa para servir de hotel, mas acabou doada para acolher uma instituição de apoio social Sebastião Almeida

A ruína da Casa da Gandarinha foi durante mais de quatro décadas uma ferida na paisagem da vila de Sintra. Por isso, quando as escavadoras ali apareceram nos últimos meses do ano passado não passaram despercebidas a quem se dirige da Fonte da Sabuga para São Pedro de Penaferrim ou desça de São Pedro até ao centro da vila. Ali está a ser erguido um hotel de quatro estrelas, uma unidade com “100 luxuosos quartos, com vista sobre a idílica Serra de Sintra”, 500 metros quadrados de salas de conferência e uma zona de estacionamento com 137 lugares de acesso público e pago.

O projecto, da cadeia de hotéis Turim, prevê a recuperação da fachada do século XIX e a construção de dois “blocos contemporâneos”, para quartos e serviços, que estão em construção ao lado da casa centenária e deverão estar concluídos no próximo ano. Só que, para isso, foi preciso escavar na serra, o que chamou a atenção da população, que começou a alertar para o corte de árvores e a demolição de muros antigos, alegando que essas intervenções estariam a lesar parte da paisagem cultural de Sintra, classificada como Património Mundial da Humanidade pela UNESCO. 

Além desta classificação, a casa encontra-se na Zona Especial de Protecção do Castelo dos Mouros, Cisterna e Igreja de Santa Maria. Dada as movimentações de terras, deveriam ter sido realizados estudos hidrogeológicos e a obra deveria ter tido acompanhamento arqueológico, apontaram. Só que a no processo camarário que o PÚBLICO consultou não há qualquer referência à realização destes estudos. 

A Direcção-Geral do Património Cultural diz agora que os trabalhos arqueológicos decorreram no primeiro trimestre do ano. A câmara sublinha que “todas as autorizações que licenciaram o empreendimento e que consolidam o direito do promotor foram apreciadas e concedidas em mandatos anteriores à gestão actual do actual presidente” que, “perante os dados que só agora teve conhecimento, determinou a abertura imediata de um inquérito”. O PÚBLICO aguarda ainda por esclarecimentos do promotor. 

A casa foi construída em 1888 pelo Conde da Penha Longa para servir de hotel mas acabou doada em testamento pela Viscondessa da Gandarinha para ser utilizada durante décadas por uma instituição de apoio social — de protecção a raparigas sem família — até 1974. Caiu no abandono, transformou-se em ruínas, até que foi vendida, em 1997, à empresa Urbibarra. A partir daí, a recuperação desta casa é uma história rocambolesca.

20 anos de avanços e recuos

O primeiro projecto para a construção de um hotel na Gandarinha foi aprovado ainda em 1998, tendo as obras arrancado em 1999 sem o deferimento final do processo e sem que o então Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico (Ippar) tivesse sido consultado. Face ao início da empreitada, o Ippar opôs-se ao projecto, admitindo, em Maio de 1999, que qualquer intervenção no local teria de obedecer a duas condições: “Manutenção da morfologia existente no conjunto, não sendo de aceitar qualquer alteração profunda ao perfil do terreno, resultante da escavação, aterro ou construção” e a “definição de uma proposta global objectiva, tendo em consideração a importância da manutenção da predominância do coberto vegetal”.

As obras pararam e, em Julho de 2013, já com Fernando Seara na câmara, o promotor apresentou um novo projecto, que assenta, segundo se lê num aditamento à memória descritiva subscrito em Agosto de 2005 pelo autor do projecto, nas orientações “muito claras” da autarquia sobre estacionamento. Na nova proposta, o número de quartos duplicou e o número de lugares de estacionamento subiu de 76 para 137, distribuídos por três pisos subterrâneos. 

O Ippar começou por rejeitar esta segunda proposta em Fevereiro de 2004. Na sequência desse parecer negativo, o promotor fez diversas alterações ao projecto. Mas o Ippar manteve as suas reservas, sem adoptar uma posição definitiva.

O arquitecto consultor do município emitiu um novo parecer (que já tinha dado aval ao projecto inicial) a 8 de Novembro de 2004, no qual considera que o projecto “é susceptível de uma aprovação de princípio”, desde que se revelem “tecnicamente viáveis” a “alteração e adaptação do traçado viário local às condições e sentidos de circulação”. As dúvidas técnicas incidiam também na escavação “numa encosta de serra cuja pendente é de 60% e na qual poderá haver considerável quantidade de águas subterrâneas”.

Dizendo que a solução proposta “parece justificada por disponibilização de lugares de estacionamento público, por solicitação da câmara”, o consultor considera “preocupante” a escavação e propõe que seja solicitado “um estudo geotécnico” para avaliar os riscos. Mas admite que a “presente fase de projecto é susceptível de uma aprovação de princípio”. 

Duas semanas depois da entrada do parecer do arquitecto consultor, o técnico do Departamento de Urbanismo encarregue de apreciar o projecto subscreveu uma informação na qual considera que “o número de pisos e afastamentos das edificações” poderão “não integrar todas as disposições do plano [Plano de Urbanização de Sintra]”. E sustenta que, em face da “escala do projecto e da sensibilidade do local” deve ser obtida “uma aprovação conclusiva” do Ippar, em relação às escavações. 

Em relação ao património natural, defende que “o processo deveria integrar um estudo hidrogeológico que possa estabelecer uma conclusão relativamente ao que se irá passar com as águas subterrâneas e possíveis implicações nas nascentes que existem na envolvente do terreno aquando da execução das obras propostas”. 

Finalmente, no que respeita às alterações propostas para a EN 249, na informação lê-se que “deveria haver uma proposta por parte da Divisão de Trânsito ao executivo municipal que integrasse questões como a circulação, estacionamento, relação com as entradas e saídas e aumento de tráfego”.

A 21 de Junho de 2005, e na sequência de uma reunião em que participaram os projectistas do hotel, os arquitectos, o promotor do empreendimento, dois representantes do Ippar e quatro da câmara de Sintra, o Ippar comunicou à autarquia a “aprovação condicionada” do projecto, face às explicações dadas pelo promotor e às alterações entretanto feitas. Mas reitera a necessidade de realização de estudos de âmbito hidrogeológico. 

No final de Julho de 2005, o chefe de divisão do Departamento de Urbanismo propôs que o projecto fosse aprovado, ainda que a apresentação de estudos hidrogeológicos pelo promotor e aprovação pelo executivo municipal de uma proposta da Divisão de Trânsito sobre questões de trânsito e estacionamento não tivessem sido concretizadas. 

Já em Setembro de 2005, o promotor apresentou um “estudo de tráfego”, com duas páginas, assinado por um dos arquitectos autores do projecto. A proposta acabou por não ser submetida à aprovação do executivo municipal, conforme propusera o técnico do Departamento de Urbanismo mas teve despacho de concordância do director do Departamento de Obras Municipais a 21 de Setembro de 2005. A 30 de Setembro, o projecto foi aprovado pelo presidente da câmara de Sintra. 

Câmara abriu inquérito

Em Maio de 2007, o procurador da República, Fernando Gomes, enviou um ofício “urgente” ao presidente da câmara em que lhe solicita que “se digne informar se existe disponibilidade para a autarquia proceder à reposição da legalidade pela via administrativa em tal processo [do hotel Gandarinha], uma vez que o acto de licenciamento datado de 30 de Setembro de 2005 contém infracção a várias disposições urbanísticas, designadamente ao Plano de Urbanização de Sintra”. Essas infracções referem-se à altura e ao afastamento de construções em relação ao eixo da via.

Na resposta, a autarquia afirma que, por se tratar de uma “proposta de ampliação de construção, preservando parte do edifício existente (...) e entendendo a operação urbanística em causa como uma operação de reconstrução (...) não se agravando assim o número de pisos e cérceas já presentes naquele espaço”.

Em relação ao afastamento das construções novas relativamente à via a tardoz (Calçada dos Clérigos), a autarquia considerou não ser de aplicar o recuo de 10 metros disposto no plano, uma vez que “a generalidade da construção, cota de cobertura [se encontram] à cota inferior à daquele arruamento”. No processo camarário a que o PÚBLICO teve acesso, nada consta quanto ao que o procurador decidiu sobre estas explicações.

Entretanto, iniciou-se uma disputa na Justiça entre o promotor e a câmara. Em Janeiro de 2008, o promotor intentou uma acção judicial no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, requerendo que a autarquia deferisse o pedido de licenciamento para a construção do hotel. No decurso desse processo, o Ministério Público defendeu que a aprovação do projecto de arquitectura era nula e de nenhum efeito por não respeitar o Plano de Urbanização de Sintra, tal como o procurador Fernando Gomes entendera em 2007, mas o tribunal não subscreveu esta tese. 

Só em Junho de 2010, a decisão final do processo foi favorável à câmara. Fernando Seara deferiu o processo em 10 de Janeiro de 2011. Nos anos seguintes, o promotor requereu sucessivas prorrogações dos prazos de que dispunha para pedir a emissão do alvará de construção e pagar as taxas devidas. O alvará acabou por ser emitido em Maio de 2016. Em Janeiro de 2017, o promotor Urbibarra vendeu a propriedade à Quinta do Bispo SA, uma empresa com sede em Portimão. 

As obras para transformar a antiga Casa da Gandarinha no Turim Sintra Palace Hotel arrancaram com escavações naquela encosta da serra e não há referência no processo camarário de que tenham sido feitos os estudos pedidos e que foram exigidos pelo Ippar (hoje DGPC). 

Numa reunião do executivo em Dezembro, o vereador Pedro Ventura (CDU) questionou se estava a ser feito o acompanhamento arqueológico da obra. “Tive oportunidade de verificar que a obra está a implicar uma movimentação de terras significativa”, afirmou o vereador comunista, sublinhando que a Carta do Património Mundial exige o acompanhamento arqueológico da obra. Na resposta, o vice-presidente da autarquia, Rui Pereira, informou que iria solicitar informação os serviços sobre a questão levantada pelo comunista. 

Ao PÚBLICO, a câmara sublinhou que “todas as autorizações que licenciaram o empreendimento e que consolidam o direito do promotor foram apreciadas e concedidas em mandatos anteriores à gestão do actual presidente da Câmara, que, perante os dados que só agora teve conhecimento, determinou a abertura imediata de um inquérito” que deverá estar concluído até Junho. 

Quanto ao acompanhamento das obras por arqueólogos, a DGPC confirma ao PÚBLICO que “as movimentações de terras foram iniciadas sem que tivessem sido implementadas quaisquer medidas de salvaguarda do património arqueológico”, sendo que os trabalhos de arqueologia só foram autorizados a 18 de Janeiro e concluídos a 27 de Março.

Entretanto, as obras continuam. “Ninguém estaria contra fazer-se ali um hotel, pelo contrário, todos os sintrenses e os visitantes poderiam regozijar-se pela recuperação daquele sítio abandonado há tantos anos. Mas o projecto tem vindo a revelar-se uma enormidade, desfigurando irremediavelmente um caminho iconográfico do centro histórico de Sintra”, lamenta o movimento de cidadãos Q Sintra.

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