Todos lhes chamam sua - a margem do Douro que pôs autarquia e porto às avessas

Há quase duas décadas que o município entende ter a tutela sobre a margem do rio. APDL vem alertando desde 2006 que PDM contraria a legislação.

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O caso da Arcada é o último episódio de um conflito por causa do domínio hídrico Nelson Garrido

O presidente da Câmara do Porto avisou esta semana que se o tribunal validar os argumentos que estão na base da acção do Ministério Público (MP) contra a aprovação do empreendimento da Arcada na margem do Douro, junto à Ponte da Arrábida, haverá 21 processos urbanísticos que podem vir a ser postos em causa, pelos mesmos motivos. E que motivos são esses? Todas estas construções, situadas na margem de 50 metros integrada no domínio público hídrico (DPH), só poderiam ter sido licenciadas após consulta à entidade com jurisdição sobre esse domínio, entende o MP. A administração do Porto do Douro e Leixões reclama essa jurisdição, que lhe foi legalmente atribuída, mas o município defende que a própria APDL abdicou dessa tutela em 1999.

A acção do Ministério Público, que visa o prédio em construção e um outro aprovado ao lado, na base da escarpa da Arrábida, a dezenas de metros da ponte, teve, na sua origem uma queixa da APDL que visava, ainda, outra edificação erguida nesta zona ribeirinha pela empresa Portomoz. Em ambos os casos, a administração portuária considerava terem sido incumpridos os deveres de consulta, no âmbito da tutela do DPH, mas na acção que o PÚBLICO consultou esta semana o MP contesta apenas os prédios da Arcada, o primeiro dos quais seguia em bom ritmo até ser embargado, na passada quinta-feira.

O Ministério Público considera, de facto, que a APDL deveria ter sido consultada, mas explica, na sua argumentação, que a tutela dos recursos hídricos, e das respectivas margens, nas quais se insere o DPH, pertence em primeiro lugar à Agência Portuguesa do Ambiente. O procurador cita a Lei da Água, em cujo Artigo 13 se refere que essas competências, em áreas afectas a portos, como o Douro, consideram-se “delegadas” nas administrações portuárias. Mas, acrescentou, as portarias que regulariam os termos dessa delegação de competências não foram publicadas.

Em todo o caso, o representante do MP assume que o legislador, através de um artigo do Decreto-Lei 226-A/2007, que define o Regime de Utilização dos recursos Hídricos, “pretendeu conferir à administração portuária com jurisdição no local uma delegação tácita das competências da autoridade nacional da água, para licenciamento e fiscalização dos recursos hídricos”, o que o leva a considerar que a nulidade de todos os actos que levaram à aprovação destes prédios é invocável por falha na audição de não uma mas de duas entidades.

O parecer de Ricardo Fonseca

O problema é que o município tem um entendimento oposto, e responsabiliza por isso, desde logo, a própria APDL por uma posição da respectiva administração, então presidida por Ricardo Fonseca, aquando da revisão do Plano Director Municipal, em 1999. A 30 de Abril desse ano, no âmbito dos trabalhos da comissão de acompanhamento da revisão do PDM, o economista escreveu uma carta que viria, ao longo das duas décadas seguintes, a ser fonte de conflito entre a empresa pública e a Câmara do Porto.

Citando os decretos de lei que fundaram a APDL (D.L. 36977, de 20 de Julho de 1948), que a transformaram numa sociedade anónima (DL 335/98, de 3 de Novembro), e o Decreto-Lei 468/71, de 5 de Novembro, que reviu, actualizou e unificou “o regime jurídico dos terrenos do domínio público hídrico”, Ricardo Fonseca começou por lembrar que “a jurisdição da APDL S.A. (...) abrange a faixa marginal do domínio público marítimo até 200 metros a montante da Ponte D. Luís I, sendo que, por império das disposições combinadas dos artigos 2.º. n.º 2 e 3.º, n.º 2, do D.L. n.º 468/71, de 5 de Novembro, a largura de tal faixa é de 50 metros contados da linha da máxima preia-mar de águas vivas equinociais”.

“Porém” – prossegue – “bem cedo se reconheceu que esta disciplina normativa era manifestamente desajustada à realidade local em face do património edificado, muito dele centenário. Consequentemente, existe uma longa prática consuetudinária harmonizante dos superiores interesses e competências do município portuense e da APDL e consistente em considerar a área de jurisdição da APDL tão-só até à guia do passeio da faixa rodoviária do lado da água, assim, e logicamente, ficando reconhecida ao município competência exclusiva desde essa guia para o interior. Porque a aludida prática consuetudinária tem provado bem, entende-se que deve continuar”, conclui o presidente da APDL.

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Nelson Garrido

Em 2004, a versão revista do PDM recebeu parecer favorável da Comissão de Coordenação da Região Norte, então presidida por João Sá, e feitas algumas alterações sugeridas por esta entidade, mas que nada tinham que ver com esta questão do domínio hídrico, o documento segue para Conselho de Ministros, que o aprova e manda publicar a 3 de Fevereiro de 2006. Nas novas plantas de condicionantes, o domínio público hídrico (sob tutela da APDL) fica confinado a uma estreita faixa, a do passeio do lado do rio, conforme proposto pelo presidente daquela empresa pública. Mas os problemas com esta interpretação não se fizeram sentir.

Em Setembro desse mesmo ano, ainda durante o mandato de Ricardo Fonseca, o licenciamento da construção dos edifícios a poente dos que agora estão a ser contestados, em terrenos da Secil, levaram o administrador da APDL responsável pela gestão dominial, João Pedro Matos Fernandes, a contestar, em carta enviada ao vereador do Urbanismo de então, Lino Ferreira, o entendimento inscrito no PDM. “A análise por mim efectuada deste processo leva-me a concluir que a zona demarcada como de ‘Jurisdição da APDL’ na planta de condicionantes do PDM do Porto não se encontra conforme a Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, sobre a titularidade dos recursos hídricos.”

Sugerida alteração do PDM

O actual ministro do Ambiente, que depois, entre Maio de 2008 e Maio 2012, foi presidente desta administração portuária, acrescentava, naquela carta, argumentos, como o da violação da Lei da Água, semelhantes aos invocados pelo MP no processo movido agora contra a Câmara do Porto e concluía que “qualquer acordo ou hábito de gestão do espaço dominial com cariz eminentemente urbano existente entre a APDL e a Câmara do Porto carece de legitimidade, que terá de ser conferida pela ARH”, a Administração da Região Hidrográfica, ou seja, a Agência portuguesa do Ambiente.

O então administrador da APDL sugeriu mesmo à Câmara do Porto que sanasse aquela alegada discrepância entre a legislação ambiental e o PDM, encetando “uma alteração de regime simplificado” ao plano. E solicitou que, entretanto, o município enviasse “à APDL, ou à CCDRN, para parecer, qualquer intervenção situada na margem, conforme o definido na Lei n. 54/2005, que definiu a titularidade dos recursos hídricos”.

Os dois apelos mereceram resposta negativa por parte do município. Em Janeiro de 2007, a Chefe de Divisão de Gestão Urbanística escreve que “não parece oportuna a alteração (mesmo simplificada) sugerida, por não se encontrar matéria que justifique a correcção". A autarquia assumiu como bom o entendimento inscrito no PDM; deixou de consultar aquela entidade, mas perante as investidas desta, noutros processos urbanísticos, sentiu necessidade de se munir de pareceres: primeiro um interno, assinado por Ana Leite, em Janeiro de 2009, e mais tarde, em Março de 2011, pediu um externo, a Fernanda Paula Oliveira.

Nesta fase já o processo da Arcada estava em andamento, e mais uma vez a APDL questionava a sua exclusão, lembrando que qualquer entidade que pretendesse construir em área inserida no DPH tinha de fazer prova de que a parcela em causa era privada antes de 1864, para obter autorização desta entidade. Mas os pareceres nas mãos do município atribuíam ambos à carta de Ricardo Fonseca, de 1999, o efeito de delimitação do DPH (até à margem do passeio mais próximo do rio), transformando o restante da faixa de 50 metros em domínio privado hídrico. E viam naquelas palavras do administrador “um juízo antecipado de qualquer valor a proteger”, como escrevia Fernanda Paula Oliveira.

Ou seja, para as juristas, e para a Câmara do Porto, a APDL deixara de ter de se pronunciar sobre cada processo concreto, porque, por antecipação, os tinha aprovado a todos. Uma interpretação que, como se percebe, tem sido controversa e controvertida, e que acaba, agora, por ser o aspecto fulcral da queixa apresentada já pela actual administração da APDL, liderada por Guilhermina Rego, no ano passado, e o alvo do argumentário do Ministério Público nesta acção contra o município conhecida há pouco mais de uma semana. O PÚBLICO tentou, sem sucesso, obter da autarquia a listagem dos 21 processos urbanísticos que poderão ser afectados, caso vingue a perspectiva da APDL e do MP, mas não obteve resposta.

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