Impasse negocial coloca directiva de direitos de autor em risco

Divergências sobre pontos-chave e um calendário apertado levam eurodeputados dos dois lados da discussão a afirmar que a tentativa de reformar a legislação pode acabar gorada.

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Plataformas como o YouTube teriam de excluir conteúdo não licenciado Paulo Pimenta

Com as eleições europeias já no horizonte, a proposta para uma directiva de direitos de autor na Internet chegou a um impasse negocial que pode levar a que o texto nem sequer venha a ser votado no Parlamento Europeu. É um desfecho que deitaria por terra mais de dois anos de esforços por parte dos legisladores da União, que começaram em 2016 a tentativa de reformar o funcionamento dos direitos de autor no espaço digital. E seria também uma derrota pesada para as indústrias de conteúdos.

“Se não existir uma votação final antes de Maio, então parece que não haverá de todo uma reforma”, admitiu ao PÚBLICO o eurodeputado alemão Axel Voss, relator da versão do texto do Parlamento Europeu que foi aprovada em Setembro, depois de um chumbo e de várias emendas. Voss é um defensor dos polémicos artigos 11 e 13, que impõem às plataformas online mais obrigações e que dão aos autores — dos músicos aos jornalistas — mais ferramentas para negociarem remunerações pela publicação online do seu trabalho.

Do outro lado da discussão, a eurodeputada alemã Julia Reda, do Partido Pirata Alemão, também confirma o bloqueio das negociações que estavam em curso para a elaboração de um texto de compromisso que pudesse vir a ser votado no Parlamento Europeu. “A directiva esbarrou contra uma parede”, resumiu ao PÚBLICO.

Na semana passada, foi cancelada aquela que iria ser a última das chamadas “reuniões de trílogo”, por reunirem o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão Europeia, as três entidades envolvidas no processo legislativo da União Europeia. Era daquele encontro que deveria ter saído um texto para ser votado no Parlamento Europeu.

Porém, o Conselho (no qual estão representados os governos dos vários Estados-membros) não conseguiu definir a sua posição, depois de uma proposta da presidência romena desta instituição ter sido chumbada. Entre outros, votaram contra países como a Alemanha, Bélgica, Itália, Suécia e também Portugal. Questionado pelo PÚBLICO, o Ministério da Cultura confirmou o voto contra, mas não explicou os motivos.

A reunião ainda poderá ser reagendada para esta semana. “Há a possibilidade de que o Conselho chegue a um acordo e se marque uma nova reunião. Mas teremos dificuldade em organizar o calendário para a votação final e para dar tempo aos eurodeputados para reflectir, se o trílogo não acordar um texto até dia 14 de Fevereiro”, explicou Voss. Isto implicará chegar em três semanas a um acordo que não foi obtido em meses.

Uma ausência de votação no Parlamento — ou um chumbo do texto que eventualmente ainda chegue aos eurodeputados — seria uma vitória para os muitos activistas das liberdades online que têm protestado contra algumas das regras propostas. Entre estes contam-se académicos, juristas e personalidades da história da Internet, como o criador da Web, Tim Berners-Lee. O fim da directiva iria também ao encontro dos interesses de multinacionais americanas como o Google e o Facebook, que se têm desdobrado em acções de lobby contra a proposta e que já estão a ser apertadas pelas leis europeias noutras questões, como as normas de privacidade e as regras de concorrência.

Pontos incontornáveis?

Os artigos que geram mais discussão são os mesmos desde o início: o Artigo 11, que permite aos sites de notícias cobrarem por excertos que acompanham os links para as páginas, e o Artigo 13, que obriga as plataformas a pagar aos autores do conteúdo que alojam, mesmo que este tenha sido lá colocado por utilizadores. Sites como o YouTube teriam de impedir que ficasse disponível conteúdo para o qual não pagassem uma licença, o que implicaria o uso de sistemas automáticos a que muitos têm vindo a chamar “filtros”. Esta tem sido uma palavra-chave nas discussões, apesar de não constar do texto.

Antes da interrupção das negociações, uma das questões em debate era a dimensão exacta dos “excertos” mencionados no Artigo 11. Muitos opositores da directiva classificam esta regra como uma “taxa de links”, consideram a linguagem demasiado vaga e mostram-se preocupados com a possibilidade de impedir todo o tipo ligações, seja em agregadores de notícias ou em redes sociais. A presidência romena do Conselho, por exemplo, pretendia que o número de palavras neste excerto fosse quantificado. 

Quanto ao Artigo 13, um dos problemas tem sido definir quais as plataformas abrangidas. A responsabilidade das pequenas empresas é um dos motivos pelo qual não se conseguiu chegar a um acordo. Entre as posições mais vincadas estão a da Alemanha, que entende que as pequenas empresas não devem ser incluídas, e a da França, que defende o oposto. Actualmente, a proposta refere-se às plataformas que dão acesso a grandes quantidades de obras, como são o YouTube e o Vimeo, um outro site de vídeos.

Para Julia Reda, a forma mais rápida de fazer avançar a directiva seria retirar os dois artigos controversos. Vê uma aprovação de um texto com o Artigo 13 como prova de que o Parlamento Europeu apoia a monitorização de conteúdo por parte das plataformas. 

“Ninguém que esteja a trabalhar na directiva dos direitos de autor acredita que a proposta do Artigo 13 funcione sem filtros. Só porque a directiva não fala sobre eles não quer dizer que não tenham de existir”, justificou a eurodeputada. Reda disse que a directiva tem outros artigos que são alvo de pouca ou nenhuma atenção mediática e que não merecem ser barrados. Um exemplo, argumentou, é o Artigo 7, que define a utilização por instituições de património cultural de obras que já deixaram de ser comercializadas. “Isto permite que as bibliotecas disponibilizem conteúdo que já não se encontra à venda, como livros antigos. Além de serem de consulta gratuita, os actuais detentores de direitos também poderiam sair beneficiados.”

Para Axel Voss, porém, uma directiva sem os artigos 11 e 13 deixa de ser relevante. “Os problemas principais, que são a questão da remuneração dos autores e jornalistas, ficariam por resolver”, justificou o eurodeputado, que vê a insistência dos opositores da directiva em falarem de filtros como uma forma de manipular informação. “É preciso encontrar uma linha ténue que satisfaça as preocupações das plataformas online e proteja os autores.” 

É um equilíbrio que os legisladores não têm conseguido atingir e os próprios autores também se começaram a queixar. Em Dezembro, organizações que representam os artistas e autores europeus, que têm estado maioritariamente a favor da proposta, escreveram uma carta aberta contra as chamadas “medidas de mitigação”, criadas para suavizar o impacto da lei nas plataformas digitais.

“É importante haver uma directiva, mas não é uma directiva qualquer. Tem de ser uma directiva em que as plataformas tenham a obrigação de remunerar o conteúdo dos autores”, disse ao PÚBLICO Miguel Carretas, director-geral da Audiogest, que gere os direitos dos artistas musicais em Portugal.

Apesar das divergências e do calendário apertado, a directiva ainda poderá avançar. “O Parlamento Europeu pode optar por votar em plenário a sua primeira posição sobre o texto”, explicou Julia Reda. “Neste caso, as negociações com o Conselho são retomadas depois das eleições. Se o Parlamento não fizer isto, a Comissão Europeia tem de decidir depois das eleições se quer desistir da directiva, ou se quer que o Parlamento e o Conselho continuem a trabalhar nela.”

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