Trabalho digno: a importância ou a irrelevância de se chamar Cristina

A perseverança desta trabalhadora, Cristina Tavares, merece não apenas solidariedade mas, mesmo, gratidão dos Outros.

“Eu não vou desistir. Eu preciso do meu posto de trabalho. É para isso que eu estou a lutar”. “Neste momento, não estou a ter meios de subsistência. Nos próximos tempos, vou voltar ao que passei antes de ser reintegrada. É pedir o subsídio de desemprego e apoio à assistente social para bens alimentares, porque é o único sustento da família.”

Ouviu-se isto, há uns dias, na RTP1 [1], numa conferência de imprensa promovida pelo Sindicato dos Operários Corticeiros do Norte e pela CGTP.

A autora destas declarações é Cristina Tavares, enquanto operária do quadro de pessoal de uma empresa corticeira de Vila da Feira, que, agora, em 10/1/2019, a despediu sob o argumento de “justa causa”.

Entretanto, se bem que imediatamente subjacente a estas declarações da trabalhadora estivesse o seu despedimento, a reflexão sobre tais declarações (e sobre o próprio despedimento) não podem ser dissociadas, descontextualizadas, de factos que vieram a ocorrer antes, há pelo menos dois anos, nas relações entre esta trabalhadora e a (então) entidade empregadora.

Como, para além de outros órgãos de comunicação social (jornais, rádio e televisão), o PÚBLICO noticiou oportunamente [2] e, há dias, em 10/1/2019, recordou em resumo [3], esta trabalhadora, depois de ter sido despedida uma primeira vez, em 2016, o tribunal deu-lhe razão na impugnação desse primeiro despedimento e ordenou à entidade empregadora a sua reintegração no posto de trabalho que exercia antes de ser despedida.

Contudo, quanto às condições funcionais e de organização do trabalho dessa reintegração na empresa empregadora, a trabalhadora, directamente e através do sindicato que a representa, denunciou publicamente (nos jornais e na televisão), estar sujeita a condições de trabalho penosas, com risco para a sua saúde e, em geral, lesivas dos seus direitos laborais.

A Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), por intervenção inspectiva, concluiu que, de facto, aspectos da organização do trabalho e, em geral, das condições materiais e sociais de trabalho de que a trabalhadora reclamava publicamente, se integravam na previsão legal de “assédio” associado ao trabalho.

Algum tempo depois, a trabalhadora, não sem antes ser previamente suspensa das suas funções para o efeito, foi objecto de um processo disciplinar com expressa intenção de despedimento por alegada (pela entidade empregadora) justa causa (“calúnia” [4]), culminando, por decisão da entidade empregadora, em 10/1/2019, na formalização do despedimento.

Em última análise, serão os tribunais a (voltar a) decidir sobre a existência, ou não, de “justa causa” para esse (novo) despedimento da trabalhadora.
Para alguém que, durante dezenas de anos, acompanhou, com proximidade e continuidade, o que se passa nos locais de trabalho, esta situação reaviva  o que, em tantas sedes e por tantos autores qualificados, tão reflectido está: as nefastas consequências pessoais, familiares e sociais para quem é vítima de situações de assédio moral associado ao trabalho; mas, também, as destrutivas e entrópicas implicações de  ordem profissional e organizacional (nas empresas e noutras organizações onde é realizado trabalho, incluindo, claro, a administração pública) de tais situações.

Sim, porque, como antes se citou noutro local [5] já a propósito desta relação de trabalho, “trabalhar não é somente realizar as actividades de produção, é também viver com os outros” [6]. Com as inerentes consequências. Em princípio, para o bem. Mas, muito em condição dos contextos organizacionais, de gestão, materiais e sociais de trabalho, pode haver, como muito há, situações de degeneração para o mal.

Ora, trabalhar, “ganhar a vida”, não pode ser nunca, desde logo, perder a vida, morrer, com (por causa de) os outros [7]. Mas também não pode ser, perder, ir perdendo vida, adoecer (física e ou mentalmente), de algum modo ir morrendo, com (por causa de) os outros.

Sequer pode ser, no (pelo) trabalho, sofrer (física e ou mentalmente) com (por causa de) os outros.

A reflexão disto leva-nos a (re)afirmar não apenas a legitimidade de qualquer trabalhador, visando a exercitação dos seus direitos e da sua dignidade legalmente sustentados, na denúncia pública da sua violação.  Não deixando, assim, que tal violação de direitos fique “abafada” na “caixa negra” do seu local de trabalho.

É que, não apenas numa perspectiva de cidadania e, mesmo de controle público da aplicação da legislação do trabalho nos locais de trabalho, tal faz pode fazer tanto ou mais pela efectivação desses direitos quanto a outros trabalhadores em situações semelhantes ou em vias de o estarem do que centenas de contraordenações e sentenças abafadas na poeira dos arquivos da administração pública dos tribunais.
De facto, quem nessa condição de observação e intervenção sistemática do que se passa nos locais de trabalho sabe que, se bem que seja indispensável que o controle (inspecção) público deste e neste domínio (e, designadamente, a ACT) reúna condições (estratégia, organização e meios) para que a sua acção seja sempre mais abrangente, eficaz e oportuna, é muito a reivindicação e, tanto quanto possível, a (auto)exercitação pelos trabalhadores dos seus direitos nos locais de trabalho e ou a denúncia da sua violação (às autoridades e aos tribunais mas também pública, desde que com legitimidade, ou seja, com objectividade,  verdade e sustentação) que garante a efectivação sustentada, sustentável e generalizada desses direitos.
Isto, na medida em que é essa reivindicação e, tanto quanto possível, exercitação de direitos e ou denúncia da sua violação por alguns trabalhadores (ou até só por um) que, desde logo, garante aos outros informação sobre esses direitos (e, claro, correspondentes obrigações) e, sobretudo, induz confiança aos outros trabalhadores para também os reivindicarem e exercitarem.

E, depois, é também a exercitação desses direitos e ou a denúncia da sua violação que, contribui para a maior eficácia e eficiência da acção dos Serviços Públicos de inspecção (essencialmente, a ACT) e de justiça do Trabalho (tribunais) neste domínio (como, aliás, noutros). E, daí, também por este mais óbvio prisma, para a sua efectivação nos locais de trabalho.

Enfim, como também já se escreveu noutro local [8], para além da acção das instituições com especiais competências de controle público e judicial neste âmbito e matéria, é necessária cada vez maior e mais alargada consciência da sociedade (o que implica uma maior informação de inerentes direitos e obrigações, no que têm especial responsabilidade os órgãos de comunicação social) para a importância humana, social e económica de condições de trabalho dignas, de um “trabalho digno” [9]. O que, necessariamente, passa pela garantia da efectivação da legislação do trabalho nos locais de trabalho, pela garantia de um “trabalho com direitos.

Ora, para ser consequente, tal consciência da sociedade para domínio de valores implica uma censura social alargada e incisiva sobre situações de violação de direitos legais associados ao trabalho.

Daí que, por parte de quem delas é sustentadamente conhecedor (e, claro, tanto quanto possível, muito mais por parte de quem delas é vítima), há que, cada vez mais, denunciar publicamente tais eventuais  situações. O que, aliás, por aí já acontece com mais frequência nalguns órgãos de comunicação social.
Lembrando ainda, pois, com Cristophe Dejours, que “trabalhar é viver com os outros”, a perseverança desta trabalhadora, Cristina Tavares, presumindo assistirem-lhe efectivamente direitos legalmente conferidos, merece não apenas solidariedade mas, mesmo, gratidão dos Outros.
Desde logo, claro, de quem mais próximo, dos seus colegas de trabalho directos. Mas também até, ainda de um ponto de vista de cidadania e de solidariedade profissional, dos trabalhadores em geral.

Depois, quanto mais não seja de um ponto de vista da garantia de um Estado de Direito, de um Estado democrático (e, verdadeiramente, não há democracia sem efectivação de obrigações e direitos legais, poder-se-á mesmo dizer, neste domínio, sem generalização de condições de trabalho dignas), qualquer posição pública visando a exercitação legítima de direitos legalmente conferidos deve merecer o devido suporte institucional.
Claro, o respeitante suporte institucional associativa e administrativamente instituído (sindicatos, autoridades competentes - e, concretamente, a ACT - e tribunais).
Mas, mesmo, eventualmente, o suporte  nstitucional ao mais alto nível do Estado.

Não tanto pela irrelevância de a trabalhadora em causa se chamar Cristina mas pela (re)credibilização e (re)valorização institucional pública da importância humana e social  (e até económica) do que está em causa: a efectivação do direito de quem trabalha a um “trabalho digno”.

[1] RTP 1, Telejornal, 12/1/2019 - https://www.rtp.pt/noticias/pais/empresa-volta-a-despedir-trabalhadora-que-tribunal-mandou-reintegrar_v1122421

[2] 19/9/2018 – “Sindicato acusa a empresa de terrorismo psicológico”

https://www.publico.pt/2018/09/19/sociedade/noticia/sindicato-acusa-corticeira-de-terrorismo-psicologico-empresa-nega-1844600; 26/11/2018 - “Corticeira da Feira multada em 31.000 euros após queixa de assédio moral a trabalhadora”

https://www.publico.pt/2018/11/26/sociedade/noticia/corticeira-feira-autuada-31000-euros-apos-queixa-assedio-moral-trabalhadora-1852531

[3]10/1/2019 – “Corticeira atribui despedimento de trabalhadora que teve de reintegrar a calúnias” - https://www.publico.pt/2019/01/10/sociedade/noticia/corticeira-atribui-despedimento-trabalhadora-reintegrar-calunias-1857406

[4] “(...) divulgação de  um conjunto de factos que bem sabia serem falsos e caluniosos, e que puseram em causa o bom nome da empresa, causando danos incomensuráveis e irreparáveis".

[5] “Assédio moral no trabalho: morrer com os outros?” - https://www.esquerda.net/opiniao/assedio-moral-no-trabalho-morrer-com-os-outros/57198

[6] Christophe Dejours (psiquiatra francês)– La Souffrance en France – la banalisation de l’injustice sociale (1998 – Paris, Éditions du Seuil);

[7] E, literalmente, onde esta questão tem sido estudada (em Portugal, muito pouco), por exemplo, em França, muitos casos de suicídio associados ao assédio moral e outra violência psicológica no trabalho já foram comprovados (por exemplo, na France Telecom e na Renault, além de em outras empresas.

Chistophe Dejours  é também um dos estudiosos deste domínio (por exemplo, com Florence Bègue, em Suicide et travail: que faire? – 2009, Paris, PUF).

[8] “Assédio moral no trabalho: sofrimento e pranto pelos dias de hoje” – 10/12/2017 - https://www.esquerda.net/opiniao/assedio-moral-no-trabalho-sofrimento-e-pranto-pelos-dias-de-hoje/52323

[9] Conceito central na estratégia e na acção da Organização Internacional do Trabalho, na formulação original de decent work

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