Morreu Jonas Mekas, o padrinho da avant-garde do cinema norte-americano

O cineasta que nasceu na Lituânia tinha 96 anos, mais de 60 deles passados a fazer cinema e era também poeta e divulgador.

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Pedro Cunha
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Jonas Mekas dirigindo-se ao público durante a exposição Anthology Film Archives: Looking Forward em 2009, em Nova Iorque

Jonas Mekas, o padrinho do cinema avant-garde norte-americano e do underground nova-iorquino, realizador, poeta, morreu esta quarta-feira, aos 96 anos. A notícia foi avançada pela distribuidora francesa POTEMKINE films, no Twitter, sem mais informações. No Instagram da sala de cinema Anthology Film Archives, que o realizador fundou em 1970, pode ler-se: "Jonas morreu calmamente e em paz hoje de manhã cedo. Estava em casa com a família."

Nascido na Lituânia em 1922, fugiu do seu país natal em 1944, depois de ter sido levado, juntamente com o irmão Adolfas (1925-2011), para um campo de trabalhos forçados pelos nazis. Acabou por se fixar nos Estados Unidos, em 1949. Ali trabalharia no mundo do cinema experimental ao longo de mais de 60 anos, fazendo a crónica das "décadas prodigiosas" de Nova Iorque nos anos 1950, 60 e 70. Assinou filmes como The BrigLost, Lost, Lost ou Walden. O impacto que teve na vida artística e cultural da cidade foi incomensurável. Aquilo a que chamamos o cinema “experimental” ou de “vanguarda” não seria o mesmo sem ele. Pelos filmes que fez, mas também pela ajuda que deu na divulgação dos filmes de outros.

Como crítico de cinema, nos anos 50 e 60, nas páginas da Film Culture ou do Village Voice, ao lado de nomes como Stan Brakhage ou Shirley Clarke, puxou para a primeira linha o trabalho, normalmente ignorado, de cineastas “amadores”, não-narrativos, totalmente à margem de qualquer sistema. Fundou a Filmmakers’ Cooperative, que acabou por ser um centro da produção “experimental” nova-iorquina, e mais tarde foi um dos fundadores dos Anthology Film Archives, instituição que pode simplisticamente ser descrita como uma cinemateca votada primariamente à conservação e divulgação do património do cinema experimental e de vanguarda.

Como cineasta, Jonas Mekas era o verdadeiro “homem da câmara de filmar”, a mais perfeita encarnação do homem sonhado por Dziga Vertov. Filmava constantemente, com as suas câmaras de super 8 ou 16mm, mais tarde vídeo (formato dos seus muitos filmes das últimas décadas), mas filmava sem pensar necessariamente em filmes – aspectos da vida quotidiana, da sua, dos seus amigos, da cidade de Nova Iorque. Depois de dois filmes (Guns of the Trees e The Brig) que, integrando plenamente a vaga independente que explodia no principio dos anos 60, eram ainda relativamente “convencionais”, foi no final dessa década que se sentou pela primeira vez a uma mesa de montagem com o objectivo de ordenar o muito material que filmara desde a chegada aos Estados Unidos – impulsionado por um susto: um incêndio na porta ao lado do sítio onde guardava as suas bobines. Isso deu, em 1969, o magnifico Walden – Diaries, Notes & Sketches, que praticamente funda o género diarístico, um cinema na primeira pessoa, câmara à mão, montagem em livre associação, um olhar elegíaco sobre todo um ecossistema – que o tempo também tornou em “documentário”, retrato de uma cidade, de uma geração e de um mundo à parte (Mekas filmou “toda a gente”, de Stan Brakhage e Gregory Markopoulos a John Lennon e Yoko Ono, passando pelos Velvet Underground e por Carl Dreyer).

Ao longo dos anos 70, o material acumulado foi gerando mais filmes, como Lost, Lost Lost (este assente sobretudo nas bobines filmadas durante os primeiros tempos de Mekas em Nova Iorque) ou Reminiscences of a Journey to Lithuania, uma evocação das suas raízes (tendo-se tornado cidadão americano, Mekas nunca perdeu a cidadania lituana, e estava envolvido em projectos de apoio às artes no seu país natal).

Com o vídeo, nos últimos anos, a produção de Mekas tornou-se mais regular, e era frequente a estreia de novos filmes seus, alguns com material contemporâneo, outros montando imagens do seu imenso arquivo pessoal (como é o caso do belíssimo Outtakes from the Life of a Happy Man, espécie de retorno ao espírito elegíaco subjacente a Walden). Quando esteve em Lisboa para a retrospectiva que o DocLisboa lhe dedicou em 2009 (oito anos depois, foi alvo de outra retrospectiva em Serralves), disse olhar para a sua obra com desprendimento: o seu verdadeiro gozo estava em mostrar e ajudar as obras de outros. Também por isso lhe chamam “o padrinho”, o padrinho da vanguarda nova-iorquina. Sem ele e sem a sua acção, a mitologia artística da cidade não seria a mesma. Morreu uma figura maior do que a vida, que tornou maior a vida à sua volta.

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