Trump não é uma piada

Trump não é uma piada, como fazem crer, muitas vezes, os jornalistas das televisões e a sua base de apoio é basicamente indiferente à inteligência crítica que se dá ao luxo de desprezar o Presidente que elegeram.

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1. Nos dias que correm, começa a ser perturbador passar algum tempo seguido diante das televisões por cabo americanas. Os canais de notícias, sejam da CNN ou da MSNBC ou da FOX, têm apenas um tema. Nem vale a pena dizer qual é. O mundo fica de fora, ou melhor, o mundo fica de fora desde que o Presidente não se lembre de interferir com ele, o que também não é raro, dada a omnipresença dos EUA. Donald Trump, é bom acrescentar, fornece hora a hora, minuto a minuto, matéria para manter esta corrente ininterrupta de notícias que não são bem notícias. Ou, pelo menos, que são apresentadas de uma forma que foge ao velho conceito jornalístico de notícia. Os apresentadores-comentadores-animadores dos sucessivos programas das televisões por cabo – as estrelas dos respectivos canais – já não se coíbem de iniciar as notícias sobre o Presidente com um sorriso irónico nos lábios, antecipando mais um grande espectáculo. Vejam lá o que ele acaba de dizer! Normalmente, Trump faz jus a esta forma original de apresentação. Nos últimos dias, o célebre muro ao longo de toda a fronteira com o México e o consequente shutdown parcial da administração federal (que atinge 800 mil funcionários públicos e que começa a atingir fortemente os mais vulneráveis e indirectamente os principais serviços) são praticamente a única notícia que merece referência constante. O que Trump-candidato disse sobre o muro. O que Trump-Presidente disse sobre o muro. O que diz hoje e dirá provavelmente amanhã sobre o muro. Com um novo condimento saído directamente da mudança de maioria na Câmara de Representantes do Congresso, que passou para os democratas, que deixou de assinar de cruz a sua vontade ou de garantir a sua imunidade aos escândalos que o envolvem.

2. Mas voltemos às notícias. Ou melhor, à ausência delas. O apresentador sorri, anuncia a “última” birra ou o último tweet de Trump, como quem diz: “Vejam só, o tipo ultrapassa-se a si próprio” ou “pensavam que já tinham visto tudo?”. Os comentadores convidados, analistas de vários órgãos de comunicação social, académicos ou membros de anteriores administrações, dão a sua própria versão da última ideia peregrina do Presidente ou do seu comportamento muito pouco (ou mesmo nada) presidenciável. São poucas as vozes de quem se proponha defendê-lo, à excepção dos membros do Partido Republicano ou de um ou outro comentador. Trump tem dificuldade em encontrar gente para preencher os quadros de pessoal da Casa Branca ou até o chefe do Pentágono. É natural que a CNN não tenha à sua disposição um leque vasto de gente disposta a fundamentar as decisões deste Presidente, mas acaba por tornar-se extremamente redutora esta forma de informar e pode representar, ela própria, um enorme risco.

3. Claro que esta conversão das notícias em opiniões e, sobretudo, em piadas, não atinge da mesma maneira os grandes jornais de referência que, de um modo geral, continuam tão bons como sempre foram. Mas há apesar de tudo uma tendência inquietante para a transformação das suas páginas de opinião numa pauta de uma nota só. Apenas o exemplo do Washington Post de sábado: “Trump is the president of the Republican base – not the country”; “The country needs a Republican to challenge Trump in 2020”; “Sister Norma wanted to show Trump what it is like on the border. He didn’t care to listen”; “The Wall is a testament to Trump’s toxic narcissism”. É verdade que qualquer pessoa com um mínimo de bom senso e de cultura política percebe que ele não foi talhado para ocupar o lugar que lhe dá um poder enorme sobre o mundo, ainda mais do que um poder enorme sobre a América. A vitória dos Democratas na Câmara, a saída do último “adulto na sala” (como se diz por lá sobre a demissão do secretário da Defesa James Mattis), a queda nas sondagens (mesmo assim, mantém 43 por cento de aprovação), a aproximação da próxima corrida presidencial (as “primárias” estarão lançadas no Verão deste ano) tornaram-no uma figura ainda mais solitária, que facilmente imaginamos a percorrer as salas da Casa Branca vociferando contra todos os que o querem impedir de construir o “belíssimo muro” que prometeu aos americanos em 2016, a ter de encarar Nancy Pelosi, o rosto da nova realidade que tem de enfrentar no Congresso, ou ouvir as jovens caras novas da Câmara dos Representantes exigirem sem pedir autorização a ninguém o seu “impeachment” ou, sobretudo, o cerco judicial a apertar-se à sua volta, por via dos seus mais próximos colaboradores na campanha de 2016 (alguns já presos) e com um Congresso disposto a obrigá-lo finalmente a responder às suas perguntas, sejam elas sobre a declaração de rendimentos que não entrega, ou eventuais tentativas de obstrução da justiça ou de conluio com uma potência estrangeira para ganhar as eleições. Ainda pode contar com um Senado que lhe é favorável e com um Partido Republicano que manteve refém durante os dois primeiros anos de mandato, mas que começa a desacreditar na sua invencibilidade e a fazer contas às próximas eleições para os lugares de senadores que vão estar em disputa em 2020. Mesmo que continue a não haver qualquer sinal de uma alternativa à sua recandidatura ou que a sua base eleitoral que se mantém fiel continue a ser vasta o suficiente para lhe garantir uma plataforma de lançamento para o segundo mandato, que provavelmente nenhum outro candidato republicano teria.

4. O  problema é que Trump não é uma piada, como fazem crer, muitas vezes, os jornalistas das televisões e a sua base de apoio é basicamente indiferente à inteligência crítica que se dá ao luxo de desprezar o Presidente que elegeram. Muito mais importante ainda, Trump não é um fait-divers, um fenómeno passageiro perante o qual nos baste fechar os olhos e esperar que passe. É, pelo contrário, a expressão mais ou menos caricatural de uma forte corrente de opinião entre os americanos que vê nos imigrantes um perigo, no mundo uma despesa supérflua, nas tropas na Síria uma inutilidade ou nas institucionais multilaterais uma perda de tempo e de dinheiro. E, acima de tudo, que está farta de uma certa elite “costeira” geralmente sem problemas na vida, que vêem a uma distância incomensurável dos seus próprios problemas, que não lhes liga nem os compreende e que tem entre os seus mais lídimos representantes os jornalistas das grandes cadeias de informação e da grande imprensa de referência. Fazer dele uma piada é justamente abdicar de debater aquilo que ele representa. Esperar que passe não resolver nenhum dos problemas que levaram à sua eleição nem aqueles que ele próprio criou desde que foi eleito. Mas mais ainda. Este clima de polarização mediática acaba por servir às mil maravilhas os seus objectivos eleitorais. O muro? Que disparate. As próprias sondagens dizem que uma maioria de americanos o acha desnecessário. Mas a retórica contra os imigrantes, descritos como terroristas, ladrões, drogados, criminosos de toda a espécie, que vem associada ao muro, essa não deixou de ser popular entre muita gente. Trump diz que entraram 6 mil terroristas pela fronteira com o México. O FBI diz que foram só meia dúzia. Trump diz que falou com os seus antecessores na Casa Branca e que todos eles admitiram a necessidade do muro. Nenhum falou com ele sobre o assunto. Trump diz que os Democratas querem um muro desde que seja de metal. Não querem. Chocante? Com certeza. O problema é que, como escreveu já há algum tempo a revista The Atlantic, “os media não perceberem o fenómeno Trump na sua real dimensão porque o levaram à letra mas não o levaram a sério, enquanto os seus apoiantes o levaram a sério, ainda que não literalmente.”

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