Atração pelo perpetrador

Trata-se de perceber com que finalidade se dá voz e cidadania mediática a estas personagens. Porque nos pedem que os escutemos?

Ele é “um nacionalista a 100%, convicto de que é o melhor para o nosso país”. Quando lhe lembram que por algum motivo esteve preso muito tempo – é pela “injustiça” contra ele cometida (a rubrica televisiva chama-se “Diga de sua (in)justiça”) que o convidaram -, repete que “não tenho qualquer tipo de arrependimento do meu passado”. “O sistema enclausurou-me”, “fui o primeiro português em Portugal a ser condenado depois do 25 de Abril a uma pena de prisão por ter escrito um texto na Internet”. No mesmo dia, há uma semana, a TVI convidou duas vezes o neofascista Mário Machado, a pretexto de notícia nenhuma mas simplesmente porque, “quando ele diz que é necessário um, dois ou três Salazares, temos de ouvir as ideias deste homem” (Você na TV).

Temos?! O homem que há mais de 20 anos milita em e dirige organizações neofascistas (Hammerskins Portugal, Frente Nacional, Nova Ordem Social), cujos membros praticam violência política e racial, que esteve preso dez anos (cúmulo jurídico) por discriminação racial, coação agravada, posse ilegal de arma, danos e ofensa à integridade física qualificada, deve ser ouvido na TV porquê? Numa reportagem sobre violência política e racial e ameaças à convivência democrática? Não: num programa matinal de entretenimento, com Manuel L. Goucha a achar que cumpre o seu dever de fazer “o contraditório” (?!), permitindo que o neofascista, que nega ser racista, pudesse “mostrar” que também não é homofóbico: “tem alguma coisa contra mim?”, pergunta-lhe Goucha por “viver com um homem”; “se tivesse não estaria aqui”, responde-lhe, sorridente, Machado.

É a atração pelo perpetrador. De Truman Capote, com A sangue frio (1966), ao filme A queda (2004) sobre um Hitler humanizado pelos seus medos pessoais, cinema, literatura e televisão disto estão cheios. Não se trata de discutir o interesse histórico ou jornalístico (argumento habitual) de cada uma destas personagens. Trata-se de perceber com que finalidade se dá voz e cidadania mediática a estas personagens. Porque nos pedem que os escutemos? Em 1994, Emídio Rangel, diretor de informação da SIC, convidou o ex-pide Óscar Cardoso a negar que a polícia política tivesse torturado e executado e a defender a “ética” e o “patriotismo” da PIDE. Em 1998, também na SIC, Felícia Cabrita e Paulo Camacho levaram a Moçambique, comovido, o homem que chefiou a companhia de comandos que perpetrou os massacres de Wiriyamu (1972). Em 1996, José Pedro Castanheira abriu as páginas do Expresso à voz sinistra de um dos assassinos de Humberto Delgado, Rosa Casaco, para este poder assegurar que a culpa pela morte do general e de Arajaryr Campos havia sido do próprio Delgado.

A extrema direita é um “tema tabu”, disse o jornalista da TVI24 que entrevistou Machado. É a lengalenga do costume, de quem acha (Henrique Raposo, Rui Ramos…) que vivemos numa “ditadura cultural de esquerda”, que censura  opiniões “incómodas”! Mas há quantos anos “especialistas” sobre a “atualidade policial” soltam pérolas racistas nos programas da manhã da TVI e da SIC? Há quanto tempo a CMTV e o SOS24 na TVI24 se transformaram numa espécie de fake news bolsonarista em que pululam os Andrés Venturas deste submundo cultural, feito de securitarismo, demonização das minorias e reivindicação boçal do direito ao preconceito?

Hoje, quando nos criticam por denunciar o fascismo que avança, que queriam? Que calássemos, amedrontados, a denúncia das mentiras e das teses manipuladas que toda esta gente pronuncia livremente, ainda por cima descritas como “trabalho jornalístico” ou “opinião tão legítima como qualquer outra”? O que é extraordinário é atirarem-nos para cima com o “politicamente correto”! Desde quando a democracia passou a ser descrita como “politicamente correta”? Desde quando a apologia do racismo, do colonialismo, do sexismo, da homofobia, do classismo, passou a ser, outra vez, uma simples opinião? Quem convidou Mário Machado, convidou-o porque quis! Não nos digam é que o fizeram para preservar a liberdade de expressão! Os media portugueses há décadas que dão todo o espaço a quem nega a violência colonial, os massacres perpetrados por tropas e colonos portugueses em Angola ou em Moçambique, a quem nega a natureza colonial do domínio português em África, na Ásia. A quem nega e relativiza a natureza ditatorial do regime de Salazar, nega a matriz fascista do Estado Novo nos anos 30, nega a censura, a perseguição política, a tortura; até mesmo a quem nega que Salazar tenha sabido que a PIDE procurava assassinar Humberto Delgado. Bem podem começar a convidar para o debate democrático quem negue Auschwitz e que Hitler dele tinha conhecimento. Dizem por aí que também é “tabu”.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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