Tomemos decisões para a década e não para o ano

Chegou a hora de um sobressalto da vontade.

Como todos os miúdos da minha geração, a dos inícios dos anos 1970, cresci a ver episódios de Espaço 1999 e a acreditar que no início do novo milénio, quando eu tivesse 27 anos (uma enormidade!), seria uma banalidade viajar até à lua. Ao mesmo tempo, vivi uma parte da infância numa pequena aldeia ribatejana onde a eletricidade tinha chegado apenas no ano em que nasci. Quando éramos miúdos, as decisões a tomar eram entre brincar às naves espaciais e brincar aos tratores — uma forma infantil de resumir as duas faces com que o futuro se apresentava às nossas imaginações.

Os anos 80 foram, para mim, passados já em Lisboa e com a noção de que em 1999 andaríamos na Lua substituída pela noção de que alguém poderia premir um botão algures em Moscovo ou Washington e fazer com que não chegássemos sequer a 1999. Mas no fim dessa década caiu o Muro de Berlim e o catastrofismo foi substituído pelo otimismo ingénuo. Nem tudo corria bem — a começar pela Guerra da Jugoslávia em plena Europa — mas a democracia estava a avançar, Portugal a desenvolver-se e eu tinha um cartão de leitor da Torre do Tombo. Nada mau.

Depois veio o novo milénio e, década a década, uma desilusão. O século XXI começou politicamente a 11 de setembro de 2001, com um ataque terrorista tão delirante que levou o mundo a uma espiral de pânico e descontrole. Passámos uma década obcecados por um suposto “choque de civilizações”. Depois veio a pior crise desde a Grande Depressão e passámos a segunda década do milénio em regime de austeridade, com uma política avara em imaginação e futuro.

Politicamente, a década de 2020 começa já amanhã, a 1 de janeiro de 2019. Sim, é em 2019 que vamos tomar, pelo menos para Portugal e para a Europa, as decisões com que vamos entrar na década de 2020. E se comecei por um resumo das décadas que aqui nos trouxeram foi porque, apesar dos imponderáveis, é sempre possível decidir que década queremos ser. Desperdiçámos já duas décadas do novo milénio em sentimentos temerosos e egoístas. Se formos sinceros, é para mais uma década perdida — para a democracia, a humanidade e o planeta — que tudo se encaminha. Chegou a hora de um sobressalto da vontade.

Se, até agora, este milénio tem sido uma desilusão, não é porque nada na folha de rumo da tecnologia, da ciência ou mesmo da cultura tenha falhado. Podemos não viver em bases na Lua, mas usamos todos os dias objetos e meios de comunicação que seriam inimagináveis quando nasci. A humanidade é tão criativa como sempre, provavelmente mais até do que nunca. Não, o nosso erro é político. É a política que ainda não nos deixa redistribuir eficazmente a riqueza mundial, proteger o planeta e concluir o edifício de defesa dos direitos humanos que começámos a edificar há 70 anos. E é na política que teremos de encontrar soluções.

O primeiro dia do ano começará com duas tomadas de posse importantes na Américas. No Brasil, Bolsonaro. Nos EUA, um novo Congresso, cheio de mulheres, minorias e novos políticos progressistas. Só os historiadores do futuro dirão qual destes caminhos foi seguido e qual foi interrompido, qual deixou semente e qual não frutificou. O desafio que vos lanço é que pensemos como, ainda antes dos historiadores lançarem o seu veredito, poderemos agir para fazer oscilar o pêndulo na direção do progresso — das ideias de generosidade, tolerância e responsabilidade.

Usemos bem o ano de 2019 para que no futuro se possa dizer que no momento em que os nacional-populistas acreditavam estar no topo do mundo, as suas ideias já estavam velhas. A melhor ocasião que nos vai ser dada para fazer a diferença será a das eleições para o Parlamento Europeu, em maio. Usemo-las para provar que construir democracia para lá de fronteiras é possível. Façamos da grande questão na década de 2020, não se a União Europeia sobrevive ou não, mas que tipo de União Europeia queremos construir.

Um movimento progressista robusto à escala continental deveria empenhar-se em fazer aquilo a que chamo a Carta 2020, ou seja, a lista dos bens públicos europeus que a UE deveria garantir e que todos nós deveríamos lutar por obter — da erradicação da pobreza infantil à gratuitidade do ensino superior —, tal como um movimento progressista à escala global deveria definir os elementos principais necessários para a construção de uma globalização justa sustentável. Essas deveriam ser as nossas tarefas para a década.

E em Portugal? Seria possível fazer para o nosso país o mesmo exercício que fiz atrás para a Europa e o mundo. A década de 1970 foi a da democratização. A de 1980 foi a da europeízação e de uma certa normalização aborrecida mas auto-satisfeita. Na de 1990 embandeirámos em arco, com uma década de comemorações um tanto ilusórias que acreditávamos não ir acabar.

O milénio começou com uma descida abrupta à terra, quando a ponte de Entre-os-Rios ruiu e nos mostrou que podíamos ter feito em Lisboa a ponte mais longa da Europa mas que, por dentro, continuávamos — e continuamos — a ser um país desorganizado que ainda não valoriza o seu território e as suas pessoas como seria necessário. A década de 2010 foi passada no abraço asfixiante da crise e da austeridade, envolvidos num complexo de culpa e endividamento.

E agora? Portugal vai também ter eleições no próximo ano. Seria uma pena que a usássemos só para fazer os ajustes de conta costumeiros a cada legislatura. Desta vez Portugal precisa de discutir a sério como pôr a trabalhar de novo o motor do desenvolvimento e como reparar o elevador social. Isso passa por valorizar as pessoas, o conhecimento e o território, combater as desigualdades e os atrasos estruturais, e tomar decisões estratégicas sobre o nosso lugar na Europa e no mundo. Não podemos dar-nos ao luxo de perder mais uma década.

Por isso, ao olhar para 2019, saibamos ver mais longe.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico​.

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